26 outubro 2011

Terapia


- Boa tarde, eu sou doutor Silveira, pelo que li aqui em sua ficha, você é o Paulo, correto?

- Correto, doutor.

- Então, Paulo, por que fazer terapia?

- Eu pensei que você fosse me dizer isto, afinal, não sou eu que recebo por estar aqui...

(Cinco minutos de silêncio)

- Então, o que te atormenta

- Nada.

- Nada?

- Não exatamente.

- Hum.

- Doutor, não sei mais o que fazer. É uma garota. É a garota.

- Fale-me sobre ela.

- É a guria do ônibus, doutor. Ela está me enlouquecendo, doutor, eu não agüento mais.

- Siga...

- Ela parecia ser a coisa mais linda do mundo, aquele sorriso mascarado, escondido, tentando disfarçar, o jeito solto de rir, aquele jeito meigo de se aproximar...

- E por que você não a agüenta mais?

- Doutor, era tudo mentira! Ela é uma ciumenta! Ela tem ciúme das minhas amigas, das minhas primas, até da minha irmãzinha ela tem ciúmes!? Encana com o meu futebol de Domingo, não pára de falar que eu a troco pelos meus amigos...

- Bem, o ciúme dela realmente não é normal, mas vocês já tentaram conversar? Com certeza ela tem algumas qualidades também, então será que não seria o caso de tentar contornar esse ciúme todo?

- Sim... Ela tem qualidades. Ela tem um bom gosto musical, nós temos boas conversas, ela cozinha muito bem, se interessa bastante por mim...

- Viu só, não é o fim do mundo!

- Doutor, me escuta, é o fim do mundo sim! Ela é meio doida. Às vezes ela enlouquece e inventa de querer discutir a relação e vive fazendo aquelas perguntas fatais...

- Perguntas fatais?

- Doutor, o senhor é casado?

- Sou.

- Então, não há como você não saber...

- Não?

- Claro que não! Sua esposa já perguntou ao senhor se está gorda? Já encanou alguma vez quando o senhor disse “Meu bem, como você está bonita HOJE”? Ou “O que você acha desse vestido”? Ainda o “Você acha minha amiga bonita”?

- Huuuuum... Sim, entendo. Realmente, são perguntas fatais. Nem gosto de lembrar, ontem à noite a Débora me perguntou o que eu achava da mãe dela passar alguns dias conosco...

- Nossa, doutor, não sabia que o senhor também sofria com isto!?

- Rapaz, todos nós sofremos.

- Então, doutor, a pior parte é a confusão, sabe? Às vezes eu não sei se a odeio, se a amo, o que realmente sinto por essa bendita!?

- Fale mais.

- Quando ela não está perto, eu sinto saudades, sabe, a falta mesmo, a presença dela já faz um marco em minha vida. Mas quando ela chega, ela me enche de ódio, de raiva, fica tirando as coisas do lugar, reclama que o meu quarto está uma zona, que eu deveria levar as roupas para o cesto de roupa suja e não fazer o meu montinho ao lado da cama. Reclama que tem muita coisa na mesa do computador, que eu rabisco os livros... Eu praticamente quero esganá-la e jogá-la pela janela.

- A Débora também faz isto comigo. Eu sei como é. Dá vontade de tapar a boca dela com um pote de formol, para que ela apague por alguns dias, até que esse encosto saía dela.

- É doutor. Mas sabe... Depois isso passa, ela senta na minha frente e abre aquele sorriso e não tem como não me derreter. Eu odeio como ela faz o meu ódio desaparecer, não dá pra ficar bravo com ela; ela simplesmente faz tudo sumir, o céu estava cinza, ela olha lá pra fora e vem um arco-íris.

- Vem cá e como é o nome dela?

- O nome dela? Bem, isso eu não sei.

- Como não sabe?

- Então, doutor, ela existe. Mas tudo isso que eu te falei nunca aconteceu.

- Não?

- É que todo dia eu pegava um ônibus pela manhã, bem cedo. Ela estava lá. E eu a olhava, ela me olhava, mas eu sempre fui muito tímido, então, nunca sentei ao lado dela, nunca tive a coragem de dizer um “oi” sequer, nem jogar aquelas conversas fiadas de “como o tempo está feio hoje”. E agora, nem eu, nem ela pegamos aquele ônibus e eu acho que perdi uma das maiores oportunidades de minha vida.

- Então, o seu problema é frustração...

- Não, doutor. Não sei se o senhor percebeu, mas o meu problema é com a imaginação, um tanto quanto fértil... E alguém que imagina esse tipo de coisa precisa de terapia, não acha?