24 outubro 2011

Cotidiano II


Seis e dez da manhã, o despertador grita e, com a delicadeza de um paquiderme, ela o desliga. Mais um dia como outro qualquer.

O banho morno pela manhã. Graças ao Pai pelo gás encanado, pensa. Faz de tudo para não molhar um fio de cabelo; não confia na toca, acha que esse plástico vagabundo engana. Não confia muito na propaganda do sabonete, por isso, compra o que sua mãe sempre comprou ao invés do que parece ser melhor na propaganda. Mas testar, nunca testou.

Ao sair do banheiro, enrolada a duas toalhas enormes, confere o esmalte, apanha os cremes e se assenta à penteadeira. Lá vem toda uma seqüência usual. Creme às pernas, ao rosto, às mãos, ao cabelo, creme ao creme. Muito creme.

Após fechar os vasilhames apanha a escova. Escova a direita, a esquerda, e escova mais um pouco. Na realidade perde uns dez minutos escovando os cabelos. Quando se convence de que melhor não fica, vai se vestir. Nessa brincadeira já são sete e vinte, e as oito ela tem que bater o cartão.

Vai à cozinha, abre a geladeira, pega um suco qualquer, nem presta atenção na cor da caixa, toma sem sentir o sabor. Que sabor? É tudo sintético. O suco de limão parece o de groselha e tem gosto de uva, o de uva parece o de limão e tem gosto de groselha, e o de groselha parece o de uva e tem gosto de limão.

Come uma maçã e se dá por satisfeita. Um café da manhã esplendido, ao menos para os seus padrões de dois minutos.

Por sorte, mora a dois quilômetros e meio do trabalho. Iria a pé, se não houvesse um calor infernal, se sua produção não fosse toda devastada pelo cruel vento que há lá fora. Vai de carona. Ela detesta o rapaz que dirige o carro. Ele sempre faz cantadas bobas, já roçou um dedo em sua coxa ao trocar de marcha e por isso levou um tapa.

Labutava ao trabalho, secretária executiva não tem vida fácil, principalmente quando seu patrão é egocêntrico e crê que sua secretária é uma agenda ambulante que deve tomar conta dos detalhes de sua vida. A secretária é a responsável para que tudo dê certo nesse caos. Ao menos, ele pensa que o mundo funciona assim. O mundo pode até não funcionar assim, mas seu escritório de contabilidade...

Dentro de toda essa correria, o escritório aos poucos se esvazia e o patrão deixa sobre sua mesa uma série de arquivos para que ela organize, isso sem falar na agenda do dia seguinte para finalizar.

Ter que fechar o escritório era algo irritante, muito desgastante, não era a sua função e ficar até tarde, não ter tempo para si, era revoltante. Revoltante até o dia que descontava o contracheque.

Compensa ser explorada se pagam bem, não? Ao menos, todos seus vícios eram alimentados. Podia comprar suas roupas, bolsas sapatos, maquiagem, todo o luxo que alimentava seu vício vaidade podia ser feito sem grande peso na consciência. Pois algum peso sempre havia, principalmente quando aparecia no dia vinte a fatura de seu cartão de crédito.

Mas até então seu trabalho seguiria a dar orgulho a tédio. Documentos e reuniões a marcar, o silêncio e a escuridão de um escritório vazio. Ela podia até ouvir a rua zombar de sua solidão, enquanto se prendia em algo que detestava fazer. Ela odiava escritório. Em suma, acredita que qualquer pessoa que goste de estar num escritório não é normal.

Ah! Como ela gostaria de estar à beira-mar, passeando descalça com os pés beijados pela ponta do oceano que desemboca no último tocar na areia, ouvir a onda quebrar. Ah! Como ela queria! Pena que não podia.

Sentia o desejo de desaparecer, de mudar, de sumir de toda essa pugnação indigesta por ninguém que realmente faça parte de sua vida. Está cansada em esfacelar-se por estranhos.

O emprego era bom. Perto de sua casa, bom salário, seguro, com todos os direitos assegurados e todos os conformes em dia. Mas era um saco.

Terminou de pensar, agora faltavam apenas umas dez páginas para organizar. Mas para que organizar? O patrão nunca olhava os arquivos!? Ficavam num andar a baixo, empoeirando sobre as prateleiras. Para que tanto trabalho?

Para que a poeira tivesse seu espaço, afinal, poeira coitada, malograda por todos, precisava do seu espaço! Mas para isso a pequena tinha que ficar até mais tarde lá no escritório, fazendo o trabalho que sobrou e que ninguém realmente precisaria fazer. Era por caridade a cada tufo de poeira carente! Ação social de uma empresa, incompreensível o mau gosto com que a guria levava essa obra...

Depois de pensar mal de Deus e do mundo, ela acaba. Tranca tudo, e sai. Vai andando para casa, em meio ao silêncio da ausência do trânsito que já acabou há algum tempo. São quase dez da noite.

Ao passar frente à padaria resolve tomar um café e comer algo já que não há janta em casa, já que não está disposta a preparar nada nessa hora.

Come uma pequena refeição e um chocolate na sobremesa. Chocolate, segundo ela, dependendo de qual for marca, é tão bom quanto sexo. Bem, eu nunca vi nenhuma mulher a ter orgasmos comendo chocolate. Mas se for ela quem diz, quem sou eu para discordar?

Após ter seus delírios do sabor ao leite, vai descendo a rua para enfim chegar a sua casa. O sinal está amarelo, longe vem um carro preto, meio devagar, mas ela nem o olha, apenas mantém os olhos fixos ao farol.

É atropelada. Caída ao chão, passa alguns minutos desacordada.

Ao acordar vê um rapaz olhando-a fixamente. Ela se enche de raiva, vê que seu vestido rasgou, que sua blusa perdeu uns dois botões, ficara suja. Sem falar nos arranhões nos braços e pernas que ardiam.

Vendida ao ódio, só queria degolá-lo, até que ele concebeu seis palavras que lhe desconcertaram: “Meu Deus, como você é linda”.

Um comentário:

roberta- claire disse...

paulinho, somos poetas, somos bobos.