Seis
e dez da manhã, o despertador grita e, com a delicadeza de um paquiderme, ela o
desliga. Mais um dia como outro qualquer.
O banho morno pela manhã. Graças ao Pai pelo gás encanado, pensa. Faz de
tudo para não molhar um fio de cabelo; não confia na toca, acha que esse
plástico vagabundo engana. Não confia muito na propaganda do sabonete, por
isso, compra o que sua mãe sempre comprou ao invés do que parece ser melhor na
propaganda. Mas testar, nunca testou.
Ao sair do banheiro, enrolada a duas toalhas enormes, confere o esmalte,
apanha os cremes e se assenta à penteadeira. Lá vem toda uma seqüência usual.
Creme às pernas, ao rosto, às mãos, ao cabelo, creme ao creme. Muito creme.
Após fechar os vasilhames apanha a escova. Escova a direita, a esquerda,
e escova mais um pouco. Na realidade perde uns dez minutos escovando os
cabelos. Quando se convence de que melhor não fica, vai se vestir. Nessa
brincadeira já são sete e vinte, e as oito ela tem que bater o cartão.
Vai à cozinha, abre a geladeira, pega um suco qualquer, nem presta
atenção na cor da caixa, toma sem sentir o sabor. Que sabor? É tudo sintético.
O suco de limão parece o de groselha e tem gosto de uva, o de uva parece o de
limão e tem gosto de groselha, e o de groselha parece o de uva e tem gosto de
limão.
Come uma maçã e se dá por satisfeita. Um café da manhã esplendido, ao
menos para os seus padrões de dois minutos.
Por sorte, mora a dois quilômetros e meio do trabalho. Iria a pé, se não
houvesse um calor infernal, se sua produção não fosse toda devastada pelo cruel
vento que há lá fora. Vai de carona. Ela detesta o rapaz que dirige o carro.
Ele sempre faz cantadas bobas, já roçou um dedo em sua coxa ao trocar de marcha
e por isso levou um tapa.
Labutava ao trabalho, secretária executiva não tem vida fácil,
principalmente quando seu patrão é egocêntrico e crê que sua secretária é uma
agenda ambulante que deve tomar conta dos detalhes de sua vida. A secretária é a
responsável para que tudo dê certo nesse caos. Ao menos, ele pensa que o mundo
funciona assim. O mundo pode até não funcionar assim, mas seu escritório de
contabilidade...
Dentro de toda essa correria, o escritório aos poucos se esvazia e o
patrão deixa sobre sua mesa uma série de arquivos para que ela organize, isso sem
falar na agenda do dia seguinte para finalizar.
Ter que fechar o escritório era algo irritante, muito desgastante, não
era a sua função e ficar até tarde, não ter tempo para si, era revoltante.
Revoltante até o dia que descontava o contracheque.
Compensa ser explorada se pagam bem, não? Ao menos, todos seus vícios
eram alimentados. Podia comprar suas roupas, bolsas sapatos, maquiagem, todo o
luxo que alimentava seu vício vaidade podia ser feito sem grande peso na
consciência. Pois algum peso sempre havia, principalmente quando aparecia no
dia vinte a fatura de seu cartão de crédito.
Mas até então seu trabalho seguiria a dar orgulho a tédio. Documentos e
reuniões a marcar, o silêncio e a escuridão de um escritório vazio. Ela podia
até ouvir a rua zombar de sua solidão, enquanto se prendia em algo que
detestava fazer. Ela odiava escritório. Em suma, acredita que qualquer pessoa
que goste de estar num escritório não é normal.
Ah! Como ela gostaria de estar à beira-mar, passeando descalça com os
pés beijados pela ponta do oceano que desemboca no último tocar na areia, ouvir
a onda quebrar. Ah! Como ela queria! Pena que não podia.
Sentia o desejo de desaparecer, de mudar, de sumir de toda essa pugnação
indigesta por ninguém que realmente faça parte de sua vida. Está cansada em
esfacelar-se por estranhos.
O emprego era bom. Perto de sua casa, bom salário, seguro, com todos os
direitos assegurados e todos os conformes em
dia. Mas era um saco.
Terminou de pensar, agora faltavam apenas umas dez páginas para
organizar. Mas para que organizar? O patrão nunca olhava os arquivos!? Ficavam
num andar a baixo, empoeirando sobre as prateleiras. Para que tanto trabalho?
Para que a poeira tivesse seu espaço, afinal, poeira coitada, malograda
por todos, precisava do seu espaço! Mas para isso a pequena tinha que ficar até
mais tarde lá no escritório, fazendo o trabalho que sobrou e que ninguém
realmente precisaria fazer. Era por caridade a cada tufo de poeira carente!
Ação social de uma empresa, incompreensível o mau gosto com que a guria levava
essa obra...
Depois de pensar mal de Deus e do mundo, ela acaba. Tranca tudo, e sai.
Vai andando para casa, em meio ao silêncio da ausência do trânsito que já
acabou há algum tempo. São quase dez da noite.
Ao passar frente à padaria resolve tomar um café e comer algo já que não
há janta em casa, já que não está disposta a preparar nada nessa hora.
Come uma pequena refeição e um chocolate na sobremesa. Chocolate,
segundo ela, dependendo de qual for marca, é tão bom quanto sexo. Bem, eu nunca
vi nenhuma mulher a ter orgasmos comendo chocolate. Mas se for ela quem diz,
quem sou eu para discordar?
Após ter seus delírios do sabor ao leite, vai descendo a rua para enfim
chegar a sua casa. O sinal está amarelo, longe vem um carro preto, meio
devagar, mas ela nem o olha, apenas mantém os olhos fixos ao farol.
É atropelada. Caída ao chão, passa alguns minutos desacordada.
Ao acordar vê um rapaz olhando-a fixamente. Ela se enche de raiva, vê
que seu vestido rasgou, que sua blusa perdeu uns dois botões, ficara suja. Sem
falar nos arranhões nos braços e pernas que ardiam.
Vendida ao ódio, só queria degolá-lo, até que ele concebeu seis palavras
que lhe desconcertaram: “Meu Deus, como você é linda”.
Um comentário:
paulinho, somos poetas, somos bobos.
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