28 outubro 2011

Coração e o Ingrato



- Até que ponto irei insistir para ter o seu amor? Como posso resistir? Eu fiz de tudo para ganhar você para mim, mas mesmo assim...

- Apesar de minhas rosas, por outros braços foi embora. Todos os meus versos, tudo o que eu soletro, todo o meu coro, nada, nada, nada fez você acreditar que era eu...

- Amei-a com toda intensidade, entreguei-a o meu coração, é a mais pura verdade. Eu tive tudo sem saber, mas por que insistir, se quanto mais eu persisto, mais eu me firo?

- Acalma! Se os erros foram no intuito de encontrar a verdade, qual é a maldade? Depois de ter vivido tudo aquilo, poderia ter ido aos confins, mas não, eu só fui até ali! Relaxa! Sou um coração dispendioso, mas sou amável.

- Se me atiro sobre lábio qualquer não quer dizer que não há sentimento. Na verdade, é apenas passageiro, é sombra sem parcela de responsabilidade. Deixa ser como será! Paixão que se dá, também se vai! Aprende, é apenas a vida, meu rapaz!

- Mas o que será, oh seu malévolo revoltoso que se atira ao revés sem mesmo me consultar! Apaixona e derrama sobre mim bálsamo envenenado, entorpecendo-me em delírios, beijos de saudade! Oh, sossega-te e não me atormentes mais!

- Veja bem meu caro, sem novos amores, qual é o sabor de continuar nesse cintilar ingrato? Se não vê o que sinto quando me atiro, não é culpa minha! Não é por qualquer coisa que dispenso a vertigem de um novo amor... Ah! Seus abraços, seus sorrisos, seus beijos e seus traços! Não se limite a pequenos sapatos, se realmente o que calças é quarenta e quatro. A pior tirania Humana é calçar sapatos apertados. Liberte-se desse mal, deixe-se viver, se atire, sinta, larga a mão desse esconder cruel! Aceite esse beijo sincero cheio de vida, sinta o mais intenso! Pois sem sentir, viver nada mais é que andar quando na verdade já se morreu!

- Coração, boêmio inexaurível, deixe de ser fecundo em atrocidades ao meu peito! Suas cicatrizes já me custam muitas verdades; explique a paz que não há, explique essa dor que não quer cessar! Canta-me por que da saudade que não acaba mais! O sentimento sempre me traí com a solidão! O que me sobra são lágrimas, nada de bom me traz esse sentimento chamado paixão!

- Meu prezado, é tão simples, tão fácil, só você não vê que aquela bela dama, da qual você menospreza o meu parecer, conquistou você com leves beijos, jeito extrovertido, levou-me aos maiores delírios; e nesse compasso você seguiu comigo e, hoje, não há mais solução: ou se entrega, ou se entrega meu caro turrão!

- Não acredito em tais palavras, não será você a me ensinar aquilo que deveria ser. É um desiludido, perdido em tardes de domingo, mal sabe o que faz! É um vagal por completo, tenta iludir-me nesse momento incerto em que não sei o que fazer. Pensa que sou o quê? Acha mesmo que estou eu apaixonado? Acha que eu sou o que meu caro? Não me entreguei com tal facilidade, não serei eu o primeiro a cair sobre essas suas falsas-verdades. Deixa-me em paz e leva contigo o que não me satisfaz.

- Veja, o sentimento existe, mesmo que você não acredite. Resista o quanto puder, pois o tempo o dirá, a verdade, qual é. Se você não quer se atirar nesse amor, a derrota será sua, a dor será minha, as lágrimas e as conseqüências por você serão todas sentidas. Apesar de tudo, vê se me escuta da próxima vez, pois ela já se foi e você ficou sem ao menos ganhar dela um adeus. Comporte-se e quem sabe um dia eu encontro outro amor vertiginoso e incerto, porém terno, para que um dia o coração não seja o seu amigo indigesto! Dei-lhe o mais puro sentimento, não é minha a culpa se não fizeste nela a verdadeira e sutil mágica.

- Faça com que ame, faça com que sinta, não perca tempo! Toma um pouco de gratidão, pois, na verdade, sem mim sua vida não tem razão!

26 outubro 2011

Primeiro ensaio sobre religião – Os religiosos cristãos


Cada dia que passa eu fico mais enjoado da religião instrumental. Vejo pessoas mais apegadas a modos de ser do que em uma essência racional e sincera de fé. São modelos de vestimenta, de comportamento e um imenso vazio de ações e caráter.

É evidente que há uma opção clara das instituições por modelos conservadores e mecânicos, uma opção clara pela uniformidade. Porém, isso gera falsos religiosos. Os adeptos cheiram a hipocrisia, são um misto de gratidão pública a um Deus o qual não acreditam, em verdade.

As palavras são vomitadas. Mensagens medíocres são passadas. E tudo que possuem é uma defesa inconsistente daquilo que mesmo professam. A realidade se estende sobre a forma como são formados, doutrinados. É uma instituição mecânica que persegue números e não qualidade. As instituições religiosas sobrevivem como um organismo desesperado, que está preocupado em ampliar-se pelo espaço e não em estabelecer-se com consistência.

Esse meio cria o tipo mais desprezível de crente, o crente adestrado. Ele foi adestrado a se comportar de um jeito, a falar de um jeito, se vestir de um jeito, ouvir música de um jeito, se comportar publicamente de um jeito.

Porém, sua essência está completamente distorcida frente aquilo que professa. Pois a realidade é que ele desconhece a essência daquilo que professa. Ele foi ensinado a se comportar e não educado na mensagem transmitida!

É exatamente por isso que o comportamento moral é discrepante – nisso se encontra questões como o relacionamento interpessoal, atitudes que envolvem comportamento ético, aquilo que realmente questiona o caráter e não o comportamento condicionado –, acabam sendo vistos em um véu de hipocrisia pelos não crentes.

Eu decidi me libertar das vias institucionais. As atitudes das instituições estão mais preocupadas em como eu me visto, se meu corpo possui tatuagens, como corto meu cabelo, o alimento que eu como, as músicas que ouço, os filmes vejo. As instituições estão mais preocupadas em suprimir expressões emocionais e de personalidade do que realizar uma transformação de caráter.

E, de uma forma triste, as instituições não perceberam aquilo que, creio eu, ser a essência mais intensa do cristianismo, a transformação de caráter. Quando você transforma o caráter, todo o resto que necessita ser transformado, o será por conseqüência. Não é preciso doutrinação. Não é preciso adestramento. E aquilo que é uma mera expressão de personalidade, continuará.

É preciso também entender que traços culturais são peculiares e que a fé não possui uma cultura ou formato comportamental.

O modelo de culto de igrejas protestantes e evangélicas é cheio de elementos de cultos pagãos, principalmente germânico e saxão em sua liturgia. O formato de missa da igreja católica é repleto de elemento da religião romana. São traços culturais que foram incorporados e adaptados ao cristianismo.

É preciso separar fé de cultura. É preciso proteger a fé da cultura, sem dúvida, pois a cultura pode sim desviar para um sentido contrário da essência da fé. Porém, desde que ambos os elementos sejam contidos dentro de suas próprias esferas, isso não acontece.

Mais do que isso, é fundamental que os crentes busquem uma vivência real a postar mensagens vazias para pessoas que conhecem superficialmente como se isso fosse prova de fé; prova de fé é viver de acordo com o caráter amoroso e ir muito além da roupa de culto.

Terapia


- Boa tarde, eu sou doutor Silveira, pelo que li aqui em sua ficha, você é o Paulo, correto?

- Correto, doutor.

- Então, Paulo, por que fazer terapia?

- Eu pensei que você fosse me dizer isto, afinal, não sou eu que recebo por estar aqui...

(Cinco minutos de silêncio)

- Então, o que te atormenta

- Nada.

- Nada?

- Não exatamente.

- Hum.

- Doutor, não sei mais o que fazer. É uma garota. É a garota.

- Fale-me sobre ela.

- É a guria do ônibus, doutor. Ela está me enlouquecendo, doutor, eu não agüento mais.

- Siga...

- Ela parecia ser a coisa mais linda do mundo, aquele sorriso mascarado, escondido, tentando disfarçar, o jeito solto de rir, aquele jeito meigo de se aproximar...

- E por que você não a agüenta mais?

- Doutor, era tudo mentira! Ela é uma ciumenta! Ela tem ciúme das minhas amigas, das minhas primas, até da minha irmãzinha ela tem ciúmes!? Encana com o meu futebol de Domingo, não pára de falar que eu a troco pelos meus amigos...

- Bem, o ciúme dela realmente não é normal, mas vocês já tentaram conversar? Com certeza ela tem algumas qualidades também, então será que não seria o caso de tentar contornar esse ciúme todo?

- Sim... Ela tem qualidades. Ela tem um bom gosto musical, nós temos boas conversas, ela cozinha muito bem, se interessa bastante por mim...

- Viu só, não é o fim do mundo!

- Doutor, me escuta, é o fim do mundo sim! Ela é meio doida. Às vezes ela enlouquece e inventa de querer discutir a relação e vive fazendo aquelas perguntas fatais...

- Perguntas fatais?

- Doutor, o senhor é casado?

- Sou.

- Então, não há como você não saber...

- Não?

- Claro que não! Sua esposa já perguntou ao senhor se está gorda? Já encanou alguma vez quando o senhor disse “Meu bem, como você está bonita HOJE”? Ou “O que você acha desse vestido”? Ainda o “Você acha minha amiga bonita”?

- Huuuuum... Sim, entendo. Realmente, são perguntas fatais. Nem gosto de lembrar, ontem à noite a Débora me perguntou o que eu achava da mãe dela passar alguns dias conosco...

- Nossa, doutor, não sabia que o senhor também sofria com isto!?

- Rapaz, todos nós sofremos.

- Então, doutor, a pior parte é a confusão, sabe? Às vezes eu não sei se a odeio, se a amo, o que realmente sinto por essa bendita!?

- Fale mais.

- Quando ela não está perto, eu sinto saudades, sabe, a falta mesmo, a presença dela já faz um marco em minha vida. Mas quando ela chega, ela me enche de ódio, de raiva, fica tirando as coisas do lugar, reclama que o meu quarto está uma zona, que eu deveria levar as roupas para o cesto de roupa suja e não fazer o meu montinho ao lado da cama. Reclama que tem muita coisa na mesa do computador, que eu rabisco os livros... Eu praticamente quero esganá-la e jogá-la pela janela.

- A Débora também faz isto comigo. Eu sei como é. Dá vontade de tapar a boca dela com um pote de formol, para que ela apague por alguns dias, até que esse encosto saía dela.

- É doutor. Mas sabe... Depois isso passa, ela senta na minha frente e abre aquele sorriso e não tem como não me derreter. Eu odeio como ela faz o meu ódio desaparecer, não dá pra ficar bravo com ela; ela simplesmente faz tudo sumir, o céu estava cinza, ela olha lá pra fora e vem um arco-íris.

- Vem cá e como é o nome dela?

- O nome dela? Bem, isso eu não sei.

- Como não sabe?

- Então, doutor, ela existe. Mas tudo isso que eu te falei nunca aconteceu.

- Não?

- É que todo dia eu pegava um ônibus pela manhã, bem cedo. Ela estava lá. E eu a olhava, ela me olhava, mas eu sempre fui muito tímido, então, nunca sentei ao lado dela, nunca tive a coragem de dizer um “oi” sequer, nem jogar aquelas conversas fiadas de “como o tempo está feio hoje”. E agora, nem eu, nem ela pegamos aquele ônibus e eu acho que perdi uma das maiores oportunidades de minha vida.

- Então, o seu problema é frustração...

- Não, doutor. Não sei se o senhor percebeu, mas o meu problema é com a imaginação, um tanto quanto fértil... E alguém que imagina esse tipo de coisa precisa de terapia, não acha?

24 outubro 2011

Cotidiano II


Seis e dez da manhã, o despertador grita e, com a delicadeza de um paquiderme, ela o desliga. Mais um dia como outro qualquer.

O banho morno pela manhã. Graças ao Pai pelo gás encanado, pensa. Faz de tudo para não molhar um fio de cabelo; não confia na toca, acha que esse plástico vagabundo engana. Não confia muito na propaganda do sabonete, por isso, compra o que sua mãe sempre comprou ao invés do que parece ser melhor na propaganda. Mas testar, nunca testou.

Ao sair do banheiro, enrolada a duas toalhas enormes, confere o esmalte, apanha os cremes e se assenta à penteadeira. Lá vem toda uma seqüência usual. Creme às pernas, ao rosto, às mãos, ao cabelo, creme ao creme. Muito creme.

Após fechar os vasilhames apanha a escova. Escova a direita, a esquerda, e escova mais um pouco. Na realidade perde uns dez minutos escovando os cabelos. Quando se convence de que melhor não fica, vai se vestir. Nessa brincadeira já são sete e vinte, e as oito ela tem que bater o cartão.

Vai à cozinha, abre a geladeira, pega um suco qualquer, nem presta atenção na cor da caixa, toma sem sentir o sabor. Que sabor? É tudo sintético. O suco de limão parece o de groselha e tem gosto de uva, o de uva parece o de limão e tem gosto de groselha, e o de groselha parece o de uva e tem gosto de limão.

Come uma maçã e se dá por satisfeita. Um café da manhã esplendido, ao menos para os seus padrões de dois minutos.

Por sorte, mora a dois quilômetros e meio do trabalho. Iria a pé, se não houvesse um calor infernal, se sua produção não fosse toda devastada pelo cruel vento que há lá fora. Vai de carona. Ela detesta o rapaz que dirige o carro. Ele sempre faz cantadas bobas, já roçou um dedo em sua coxa ao trocar de marcha e por isso levou um tapa.

Labutava ao trabalho, secretária executiva não tem vida fácil, principalmente quando seu patrão é egocêntrico e crê que sua secretária é uma agenda ambulante que deve tomar conta dos detalhes de sua vida. A secretária é a responsável para que tudo dê certo nesse caos. Ao menos, ele pensa que o mundo funciona assim. O mundo pode até não funcionar assim, mas seu escritório de contabilidade...

Dentro de toda essa correria, o escritório aos poucos se esvazia e o patrão deixa sobre sua mesa uma série de arquivos para que ela organize, isso sem falar na agenda do dia seguinte para finalizar.

Ter que fechar o escritório era algo irritante, muito desgastante, não era a sua função e ficar até tarde, não ter tempo para si, era revoltante. Revoltante até o dia que descontava o contracheque.

Compensa ser explorada se pagam bem, não? Ao menos, todos seus vícios eram alimentados. Podia comprar suas roupas, bolsas sapatos, maquiagem, todo o luxo que alimentava seu vício vaidade podia ser feito sem grande peso na consciência. Pois algum peso sempre havia, principalmente quando aparecia no dia vinte a fatura de seu cartão de crédito.

Mas até então seu trabalho seguiria a dar orgulho a tédio. Documentos e reuniões a marcar, o silêncio e a escuridão de um escritório vazio. Ela podia até ouvir a rua zombar de sua solidão, enquanto se prendia em algo que detestava fazer. Ela odiava escritório. Em suma, acredita que qualquer pessoa que goste de estar num escritório não é normal.

Ah! Como ela gostaria de estar à beira-mar, passeando descalça com os pés beijados pela ponta do oceano que desemboca no último tocar na areia, ouvir a onda quebrar. Ah! Como ela queria! Pena que não podia.

Sentia o desejo de desaparecer, de mudar, de sumir de toda essa pugnação indigesta por ninguém que realmente faça parte de sua vida. Está cansada em esfacelar-se por estranhos.

O emprego era bom. Perto de sua casa, bom salário, seguro, com todos os direitos assegurados e todos os conformes em dia. Mas era um saco.

Terminou de pensar, agora faltavam apenas umas dez páginas para organizar. Mas para que organizar? O patrão nunca olhava os arquivos!? Ficavam num andar a baixo, empoeirando sobre as prateleiras. Para que tanto trabalho?

Para que a poeira tivesse seu espaço, afinal, poeira coitada, malograda por todos, precisava do seu espaço! Mas para isso a pequena tinha que ficar até mais tarde lá no escritório, fazendo o trabalho que sobrou e que ninguém realmente precisaria fazer. Era por caridade a cada tufo de poeira carente! Ação social de uma empresa, incompreensível o mau gosto com que a guria levava essa obra...

Depois de pensar mal de Deus e do mundo, ela acaba. Tranca tudo, e sai. Vai andando para casa, em meio ao silêncio da ausência do trânsito que já acabou há algum tempo. São quase dez da noite.

Ao passar frente à padaria resolve tomar um café e comer algo já que não há janta em casa, já que não está disposta a preparar nada nessa hora.

Come uma pequena refeição e um chocolate na sobremesa. Chocolate, segundo ela, dependendo de qual for marca, é tão bom quanto sexo. Bem, eu nunca vi nenhuma mulher a ter orgasmos comendo chocolate. Mas se for ela quem diz, quem sou eu para discordar?

Após ter seus delírios do sabor ao leite, vai descendo a rua para enfim chegar a sua casa. O sinal está amarelo, longe vem um carro preto, meio devagar, mas ela nem o olha, apenas mantém os olhos fixos ao farol.

É atropelada. Caída ao chão, passa alguns minutos desacordada.

Ao acordar vê um rapaz olhando-a fixamente. Ela se enche de raiva, vê que seu vestido rasgou, que sua blusa perdeu uns dois botões, ficara suja. Sem falar nos arranhões nos braços e pernas que ardiam.

Vendida ao ódio, só queria degolá-lo, até que ele concebeu seis palavras que lhe desconcertaram: “Meu Deus, como você é linda”.

21 outubro 2011

Cotidiano I


 Ajeitou o paletó. Acertou a gravata. Passou a mão aos cabelos e achou que estava ótimo. Olhou-se e viu-se ao espelho, criticou-se por um instante e gostou. Pegou a pasta que estava aberta sobre a cama e colocou alguns papéis que estavam junto de seu livro predileto, na cabeceira.

Chega à cozinha, pega o café de ontem, ainda frio, toma-o. Olha o jornal por cima, não vê nada de relevância verdadeira, apenas mais desfalques, picaretagem ou viagens de lideres para falar de absolutamente nada com outros líderes. Nada que intervenha em sua vida e quebre o cotidiano.

Dá um afago no cão. Larga o jornal. Esqueceu o café pela metade, estava horrível, amanhecido, frio. Não comeu o pão, deu ao cachorro, nunca tem fome pela manhã; sua mãe sempre deixa o pão que, se comesse, lhe embrulharia o estômago.

Abriu a porta da rua, apagou a luz, apesar de ainda não estar claro, sua mãe tinha a mania de deixar as luzes acesas à noite quando ia dormir. Olhou para casa por desencargo de consciência e fechou a porta.

Desceu os degraus, nem os reparou, quase tropeçou por desleixo, segurou-se ao corrimão. Esbravejou, recompôs-se e entrou no carro e foi-se.

Meia hora depois, sua mãe se levanta. Vê migalhas aos pêlos do cachorro, sorri, já sabe que seu filho deu o pão outra vez ao cão.

Vai à mesa, recolhe a xícara e o jornal, arruma a mesa, faz duas torradas, suco, um pouco mais de café, deixou a mesa posta.

Levou o cachorro para o quintal, colocou a ração que o cão detesta, mas tem que comer, à vasilha. Vai ver o pão adormecido é tão mais saboroso que aquela coisa marrom que o cão fique com nojo da coisa marrom só de ver. O enjôo de um é o tesouro do outro.

Quinze minutos depois seu marido acorda, senta-se a mesa, dá a ela um afago e apanha o jornal sem tocar a comida, da forma como ela detesta, pois, segundo ela, o jornal é sujo e comer com mãos sujas de jornal é nojento. Ele acha isso uma bobagem. Já foi uma dificuldade convencê-lo a lavar as mãos antes de comer, diga-se então não ler o jornal à mesa. Sob suas tenras palavras, do alto de seus sessenta e oito anos, isso é tudo uma viadagem.

O pai é uma figura interessante. Machista deveras, militar da reserva, endoidou quando o filho cogitou ser vegetariano, para ele, essa história de comer apenas folhas é coisa de maricas. Só aceitou a idéia de o filho ter tal prática quando soube que era proeza do rapaz para arrastar asas a uma bela guria.

O jovem era mulherengo. Era. Depois que se enveredou em certos lençóis e acabou se traindo pelo apego, descobriu o que é sofrer nas mãos de uma mulher. Depois disso desistiu um pouco. Encheu a cara umas duas vezes, mas não conseguiu olhar pra mulher alguma, só queria esquecê-la.

Leu todo o jornal, xingou o presidente até a sétima geração, isso porque lhe faltaram termos, leu sobre o próximo jogo do seu Flamengo, que apesar de estar aos trancos e barrancos, é o seu Flamengo.

Largou o jornal sobre a mesa, pegou um copo de suco, um pedaço de bolo e um pão; foi para a sala assistir tevê. Assistia a tevê e a criticava, falava da pouca vergonha, da safadeza e das bobagens ditas. Odiava, mas assistia, odiava, mas sem ela, viver não conseguiria, pois todo dia são os mesmo programas, as mesmas birras, as mesmas coisas. E sem essas coisas, seu dia vazio ficaria.

A senhora segue limpando o domicílio, seguindo a rotina, arruma e limpa os quartos, a sala, cozinha, banheiros, lava as roupas, vive em função da casa. Passam-se os dias, passa-se a vida e ela continua ajeitando a almofada na sala.

O rapaz logo chega ao trabalho.Um escritório chato, cheio de papéis pra lá e pra cá, por todos os cantos é papelada, burocracia; é forma que encontramos de organizar o tumulto de nossas vidas, uma forma bela de construir a desconstrução, desordem corrigida pelo acaso que muda nossas vidas.

Trabalha, trabalha e trabalha, labuta e cai o suor. Tudo para passar e esquecer a insignificância daquilo que fazia, carimbar papel. Lia as baboseiras escritas por advogados que defendiam as picuinhas dos outros, seu dia era apenas ler e carimbar, carimbar e ler.

Seus colegas tiravam-lhe sarro. Nenhum deles lia nada, olhavam por cima, só liam o que acham engraçado para comentar na salinha do café. Conversavam das bobagens alheias, de como a nova secretária do dono do escritório é gostosa, que o jogo de quarta-feira foi horrível, marcam um churrasco no domingo, que nunca se realiza, combinam de tomar algo depois do trabalho, que sempre acontece.

Cinco horas, horário sagrado, intocável, apenas infringido quando o chefe ameaça com horas-extras, as pastas pretas com papelada chata, tão odiadas.

Logo o trabalho acaba e todos vão matar o cansaço na mesa do bar. Música, alegria, bebida, conversa vaga em todos os cantos, garçonete com uma minúscula minissaia, desafrouxadas gravatas, paletó no carro, sem os sapatos do dia inteiro, roda de samba, cantoria, alivio.

Pegou suas chaves e saiu. A rua vazia, tímida. O rapaz morava longe, mesmo quando o tráfego ajudava, a casa demorava a chegar. Por um acaso foi mudar a música, abaixou-se, passou ao sinal vermelho e uma jovem atropelou.

Saiu do carro, desesperado, desarrumado, desajeitado, trocando os passos, olhou-a como se fosse à última, admirou-a de ponta a ponta, até que abriu seus olhos e lhe disse “Babaca”.

20 outubro 2011

Mentiras e Ilusões


 A vida é um grande engano. Somos dotados da esperança de um porvir confortável, agradável, onde poderemos degustar aquela felicidade utópica de um filme meloso de Hollywood. Buscamos a felicidade em cada esquina, de forma tímida, disfarçadamente involuntária. Esperamos que um(a) estranho(a) que dobre a esquina guarde a formula de nossa felicidade em seu sorriso, desejamos ardentemente que o segundo seguinte venha acompanhado de um êxtase constante e infindo, uma mentira inventada pela nossa necessidade presente de completar o abismo que impera no âmago.


O que falta é uma resposta e a nossa tendência é procurar a solução em outra incompletude. Buscamos algo que encaixe, desesperadamente esperamos que a resposta esteja em um ponto exato, tátil e visível de nossa vida. É a forma mais cômoda e fácil de encarar o assustador vazio, buscar a resposta no vazio de outrem.

Nosso desespero se constrói quando o conto de fadas que arquitetamos se mostra como um castelo de areia frágil que se desfaz com a repentina mudança da maré. A mácula que nos tortura se faz evidente quando nos deparamos com a frustração de espelho. Somos tão defeituosos que a imperfeição é um fato assombroso.

Perdemo-nos em ilusões vãs quando a verdade é que nosso foco está errado. Queremos ignorar a incompletude, queremos fugir da verdade de qualquer forma, mas é inevitável, nossa carne não mente, nosso sangue carrega o vil veneno de ser errante. Nossa sina é seguir desesperadamente de lástima a falhas, torturando nosso peito com esperanças de alegrias falsas que apenas tomam o tempo e intercalam o momento que encaramos a realidade.

A vida é um grande engano! Queremos ver tudo colorido, queremos cores alegres, queremos música e requinte. Porém a vida não passa de um ciclo eterno, um romper constante, a instabilidade visceral de alegria e tristeza.

Mas vida não é preto e branco; a vida não passa de um grande engano. Enquanto procuramos diversos tons, a realidade é que a vida é um emaranhado de tons de cinza. E não importa o quando nos esforcemos para fazer o contrário, essa caminhada se limita à tentativa de esvair-se da escuridão e atingir o deslumbramento de pura luz.

Tenro engano. Enquanto nossa busca for incansável por um sorriso perdido, quando nosso dia não for alegre enquanto os pássaros não entrarem pela nossa janela e nos fazerem crer na vida em conto de fadas, a vida não passará de um narcótico.

Narcótico que perpetuará durante o tempo que pulsar no peito a imbecil insistência de beber a ilusão, alcoolizar-se na esperança de não ter que encarar o fato de ser você mesmo. Ninguém gosta de estar tão próximo dos defeitos quanto à pessoa que os comporta, é para ela que eles os são mais evidentes.

Mergulhados em nossa escandalosa podridão, buscamos na imagem de perfeição dos outros a solução para a corrompida estrutura de vida que somos. É uma pena que imaculada imagem construída em nosso âmago seja incapaz de preencher os espaços não preenchidos de nossas almas disformes. Uma imagem não passa de uma imagem, um reflexo distorcido por uma água turva. Quanto mais próximos, mais claro o reflexo. E quanto mais claro, mais abominável.

Somos insuportáveis. Tão insuportáveis que entregamos aos outros o carma de nos suportar. Se tivermos que nos suportar sozinhos, enlouquecemos. Talvez por isso sejamos tão incompletos.

Meu objetivo não é ser trágico. Nem simplesmente apontar o óbvio de sermos meras personagens construídas que buscam verdades em meras interpretações teatrais de outros que são meramente tão iguais a nós. Meu sorriso de canto está em dizer que ao encarar a incompletude e aceitá-la está a liberdade. A verdade é que há buracos que não precisam ser preenchidos, lacunas são necessárias, para que o tempo demarque a vida sem que desesperadamente tentemos planificá-la, quando viveríamos em verdade se estivéssemos interessados apenas em viver a vida.

Mas preferimos degustar a vida em busca de respostas, significados, verdades, de perfeição; vivemos em busca de algo que pudéssemos admirar. Ledo engano. A vida não passa de um ardil, cheio de incertezas, máculas e inverdades. Nós somos fogo e palha, queimando em nossos atributos como forma de seduzir e destruir o dia de outro alguém.

A vida é um grande engano. E a verdade é que adoramos nos enganar todos os dias. Temos prazer em viver essas pequenas mentiras, gostamos da sensação de torcer para que ela dê certo, mas gostamos da segurança de que não seja eterno, de não estar acorrentado, ligado definitivamente a uma decisão de puro contorno de pueril emoção.

A emoção se vai com o movimento e se perder no tempo, com isso a verdade vem à tona e se desfaz todo o enredo. Perdeu a graça para um. É o trágico fim para outro. É o apego brincando com o desapego, nosso jogo de cenas, num ato final que se desdobra enquanto nossas verdades ainda forem as mais incorretas.

Nós adoramos mentiras.
Ainda mais quando são das mentiras as mais sinceras.