17 novembro 2011

Leve crônica de aspargos

Às vezes esquecemos a vida, mas não por falta de memória. Esquecemos por aquilo que invade o peito e explode, deixando a razão e a emoção em cacos.

Você se perde, vê um mundo psicodélico e assustador, vê-se só, numa situação constrangedora, sente-se humilhado, vê que todos apontam e riem de você, vê as pessoas que ama indo embora, vê seus sonhos ruindo, vê um mundo horrível do lado de fora da janela.

Você tem medo, tem que se esconder embaixo do cobertor, entra em desespero, sente na pele o clamor daquilo que mais teme sorrindo defronte ao seu nariz. O coração palpita com o furor do momento, num instante tudo se apaga e o juízo se manifesta na nossa verdadeira face.

Até que passa, você olha para os lados e vê; sorri e outra vez sobrevive, segue, progride como outro alguém diferente do que era antes. Mas, mesmo assim, ainda é você. A batida do coração pode ter desacelerado, mas a essência da ação ou ausência dela que você teve persiste em ser você.

Eu me esquadrinho num vasto leque de incompletude. Eu refugo, me intimido por aquilo que mais desejo e admiro. Quando eu contemplo, fico desconcertado. O que há de melhor em mim se rende a pureza de um momento em que eu deveria agir, mas tudo que me resta é estar rendido ao mais belo sorriso que já vi.

Olhar para o canto e ver o gato passar. Ele se espreguiça, roça a parede da poltrona, olha pros lados e finge um miado, mas não, foi apenas um leve bocejo, até o gato está cansado demais para miar!

“Eu estaria lá por você, mas eu estou muito cansado para me levantar da poltrona macia e desligar a tevê! Isto aqui está bom demais para que eu perca meu tempo em viver!”

Eu poderia me envolver novamente, poderia beijá-la, poderia amá-la mais do que amei todas as outras, eu poderia até morrer por você se fosse preciso, mas não, eu prefiro jogar tudo isso fora e jogar um pouco mais de play station, pegar uns biscoitos no pote e engordar mais uns dois quilos.

Eu poderia ir atrás de você, mas eu prefiro me esconder aqui em casa, atrás do enfeite da mesinha ou talvez em baixo da escrivaninha, quem sabe em qualquer outro lugar da sala. O que eu não posso é admitir para mim mesmo que eu gostaria é de me esconder em seus braços.

Sou um medroso, um palhaço, tenho medo de admitir a mim mesmo o sentimento! Que homem logrado! Parece mais um cão correndo atrás do rabo... E este nunca alcança, caí ao chão e não compreender por quê! Tapado! O óbvio grita na minha face e eu ignoro o dizer.

Mas por quem sou engando? Conta-me o segredo do meu temor, porque quando eu olho em seus olhos me tremem as pernas, lacrimejam os olhos, suam as mãos, a noção se perde... Não tenho forças para olhar em seus olhos, seu perfume me desequilibra e eu sinto que não estou em lugar nenhum.

Báh! Mais uma vez apaixonado? Não, não o posso! Irei sofrer incontrolavelmente, irei olhar o sol poente e perguntar por qual motivo ele se vai e me deixará só frente a ela. Por quê? O vento sopra e levanta as folhas marrons já mortas, ele ventila as cinzas do dia, leva embora o perfume das flores diurnas, leva a tristeza de um ciclo que se encerra sem me fazer ser o que almejo. Eu desejo fervorosamente o objeto daquele beijo, banhado ao pôr-do-sol de iludir-me na divagação vã. E lá se vai mais uma tarde sem que nada aconteça onde as belas palavras me levam para o mesmo caminho... Que me retorna para onde já estou.

Talvez o salivar da minha boca seja o sinal que o sabor do veneno já está adaptado junto aos meus aminoácidos. Talvez o fato d’eu sentir mais sede dos seus lábios que da própria água já signifique alguma coisa, mas eu não sei, sou só um qualquer jogando palavras cruzadas. Qual o nome da Primeira Deusa Grega com quatro letras?

Verdades, mentiras, todas sendo lavadas na mesma vasilha, serão separadas como feijão. Nosso juízo, infelizmente, baila vadio na valsa de não ver. Em seus passos trocados, certas verdades caem no lixo, algumas mentiras param na panela e depois não entendemos o porquê de nosso feijão estar tão ruim. Vivemos numa dança de critérios aleatórios moldados a comodidades, não em necessidades.

 Eu gosto de olhá-la de longe. Mesmo que me sinta tentado em me aproximar, não irei. É tão confortável ficar aqui admirando, depois reclamando, questionando o céu do por que d’eu nunca ter você aqui, será que você me diz?

Provavelmente não vá precisar, pois eu sei, só não consigo admitir que estou tão acomodado com o platonismo que talvez amar assim seja automático; deixar o amor escapar sem se realizar seja o que eu posso fazer para não permitir que meu sentimento ultrapasse a idealização, para não tirar de você o meu estigma de perfeição.

A minha inércia é a melhor forma de amar você da forma mais bela. Infelizmente, eu tenho medo da dor, da rejeição, da incongruência que não permitiria que nossas imperfeições se fizessem juntas tão belas.

Ás vezes penso em você como um anjo, ás vezes penso em você como uma flor, mas descobri que faltou pensar de verdade em você. Faltou lhe ver como ser humano, faltou tirá-la a perfeição e tratá-la como mulher. Invés de adular a todas as qualidades, faltou amar seus defeitos.

Quando olho seu retrato viajo, viajo nos seus óculos escuros, viajo nos seus lábios, suaves, tentadores e sensuais, viajo tanto que quando vejo que você está presa aos meus pensamentos, você se torna uma constante, é lei irrevogável, meu álibi, meu motivo, minha distração, é aquilo que me faz viver sorrindo enquanto todos estão chorando com o final refrão.

Gosto de olhar para o pôr-do-sol. É uma pena que mal possa vê-lo com tantos prédios ao redor. Perdi o horizonte, o mundo me separa do belo, o concreto, o moderno, comprou-me com o conforto e eu me vendi pela facilidade, agora corro atrás da comodidade, corro para subir sobre quem estiver vacilando abaixo. Troquei a felicidade que vem do esforço pela mentira de sabor palatável.

Você poderia me dizer, eu poderia ouvir, mas estamos muito ocupados com coisas mais importantes. Preferimo-nos a todo esse mundo doente! Prefiro ficar perdido em seus lábios, enroscado em seus braços a discutir política ou as mazelas que haveremos de enfrentar. Visto em seus olhos há um mundo muito mais bonito, visto em seus olhos eu tenho um motivo para ficar aqui sentado por horas e horas, sentindo seu perfume, tocando sua pele, deitar ao chão, sobre tapete bege. Pena que na verdade, você nunca está. Você nunca esteve. E pelo meu estado, você nunca estará.


Ontem derrubei o pote de aspargos, vi mil desenhos se formarem ao chão. Parecia criança deitada no gramado da praça olhando as nuvens para ver com que se pareciam. Com alguns aspargos escrevi seu nome. Logo pensei, quão bobo eu sou. Tolo, apaixonado, um ato ingênuo. O mais infantil dos homens praticava um ato nada mais que ridículo. Logo pensei, quem gostaria de ter seu nome escrito com aspargos?

A todo instante um sonho morre, a cada instante se perde uma oportunidade, a cada olhar pode-se descobrir um pouco que há de gente em nosso âmago. Mas o relógio corre, a vida acelera a maratona, seguimos no ritmo da degola e esquecemos os aspargos no pote quando deveríamos jogá-los ao chão, rasgarmos nosso pedestal e ser intensos pelo puro simples ato de cada dia estarmos vivos, ainda. Queria eu que escrevêssemos juntos nossos nomes com aspargos.

03 novembro 2011

Por favor, não seja um babaca!


Nos últimos dias muitos amigos meus têm agido como verdadeiros babacas. Eu não sou fã de Lula. Nunca votei nele. Muito menos em candidatos do PT. Mas isso não justifica uma militância babaca.

O ex-presidente tem câncer e está recebendo tratamento particular. Desde que se tornou de conhecimento público, iniciou-se uma campanha para que Lula fizesse seu tratamento pelo SUS. Isso é uma tremenda babaquice.

Discordar de alguém politicamente é uma coisa. Outra coisa é agir de forma mesquinha e rancorosa quanto a uma doença grave desta pessoa. Independente do que Lula falou sobre avanços de tratamento público na área da saúde, não é justo para com a sociedade que ele faça uso deste tratamento.

O ex-presidente possui recursos para se tratar pelo sistema particular. E dentro da realidade em que nossa sociedade é construída, o capitalismo, é evidente que o sistema privado de saúde vai ter mais recursos e melhor qualidade de tratamento. E tendo condições de usufruir desse tratamento, Lula deve fazê-lo principalmente por dois motivos:

- Não é válido tirar a chance de alguém com uma doença tão grave de se tratar pelo SUS somente pelo capricho político. O custo de tratamento de câncer é elevadíssimo e para que Lula se trate pelo sistema público, seria necessário que alguém deixasse de ser tratado. Tendo recursos disponíveis para fazê-lo pelo sistema privado, isso seria uma temeridade.

- A opção para tratar uma doença tão agressiva como é um câncer deve ser sempre a melhor opção possível. Somente quem já teve uma pessoa próxima que passou ou foi vitimada pela doença sabe da força de um câncer. Não é algo com o que se possa brincar ou relaxar.

É preciso entender que sim, o Brasil fez avanços no tratamento público de saúde. Isso não quer dizer que ele seja bom como privado. Mas o atendimento público de saúde do Brasil é invejado pelos EUA, por exemplo, onde tudo que é ligado à saúde possui um custo elevadíssimo e possuir seguro de saúde é fundamental para não ser vitimado até mesmo por doenças tratáveis sem precisar arcar com um custo extraordinário.

O Brasil ainda implantou distribuição de medicamentos para o tratamento de uma série de doenças de forma grátis. Temos aqui medicamentos grátis que não há em qualquer país do mundo.

Isso quer dizer que o Sistema Único de Saúde é o suficiente? Não, ele ainda é insuficiente. Mas ele conquistou uma série de avanços. É fundamental também compreender os avanços que a saúde atingiu a âmbito federal, ou seja, aquilo que foi feito para todo o Brasil. E nesse aspecto conquistamos avanços significativos nos últimos 20 anos.

É preciso compreender como a saúde tem se organizado no país. Temos um sistema descentralizado. Isso é facilmente observável pelo maior volume de hospitais estaduais e municipais frente a federais, que são em quantidade muito menor.

O Governo Federal repassa a administração e aplicação da maior parte dos recursos da saúde para Estados e Municípios. Ou seja, se o seu Hospital Público não está bem ou é responsabilidade do Prefeito da sua cidade ou do Governador do seu estado.

É evidente que o governo FHC teve ações mais impactantes na área de saúde que o Lula. Porém, a gestão da saúde não foi ruim. Ele continua sendo defeituosa, mas é superior a da maioria dos países, inclusive de países desenvolvidos, comparando o âmbito público de ambos.

Por isso, ironizar com o câncer de Lula não é apenas deselegante, mas é um atestado de burrice. Você acha que a saúde está ruim? Poderia estar pior. Você queria que ele se tratasse pelo SUS? Se fossem seus pais ou seus filhos a perder o tratamento de câncer no SUS para que ele se tratasse, você realmente acharia isso bom, justo?

Reflita com humildade. Não é uma questão de opinião política, de gosto ou preferência. É uma questão de noção, de caráter. Saiba separar a discordância da pessoa. Não torne a diferença em ódio. Não odeie o homem. Pensamentos cheios de ódio levam a babaquice. Pense, seja inteligente. Discorde com civilidade.

28 outubro 2011

Coração e o Ingrato



- Até que ponto irei insistir para ter o seu amor? Como posso resistir? Eu fiz de tudo para ganhar você para mim, mas mesmo assim...

- Apesar de minhas rosas, por outros braços foi embora. Todos os meus versos, tudo o que eu soletro, todo o meu coro, nada, nada, nada fez você acreditar que era eu...

- Amei-a com toda intensidade, entreguei-a o meu coração, é a mais pura verdade. Eu tive tudo sem saber, mas por que insistir, se quanto mais eu persisto, mais eu me firo?

- Acalma! Se os erros foram no intuito de encontrar a verdade, qual é a maldade? Depois de ter vivido tudo aquilo, poderia ter ido aos confins, mas não, eu só fui até ali! Relaxa! Sou um coração dispendioso, mas sou amável.

- Se me atiro sobre lábio qualquer não quer dizer que não há sentimento. Na verdade, é apenas passageiro, é sombra sem parcela de responsabilidade. Deixa ser como será! Paixão que se dá, também se vai! Aprende, é apenas a vida, meu rapaz!

- Mas o que será, oh seu malévolo revoltoso que se atira ao revés sem mesmo me consultar! Apaixona e derrama sobre mim bálsamo envenenado, entorpecendo-me em delírios, beijos de saudade! Oh, sossega-te e não me atormentes mais!

- Veja bem meu caro, sem novos amores, qual é o sabor de continuar nesse cintilar ingrato? Se não vê o que sinto quando me atiro, não é culpa minha! Não é por qualquer coisa que dispenso a vertigem de um novo amor... Ah! Seus abraços, seus sorrisos, seus beijos e seus traços! Não se limite a pequenos sapatos, se realmente o que calças é quarenta e quatro. A pior tirania Humana é calçar sapatos apertados. Liberte-se desse mal, deixe-se viver, se atire, sinta, larga a mão desse esconder cruel! Aceite esse beijo sincero cheio de vida, sinta o mais intenso! Pois sem sentir, viver nada mais é que andar quando na verdade já se morreu!

- Coração, boêmio inexaurível, deixe de ser fecundo em atrocidades ao meu peito! Suas cicatrizes já me custam muitas verdades; explique a paz que não há, explique essa dor que não quer cessar! Canta-me por que da saudade que não acaba mais! O sentimento sempre me traí com a solidão! O que me sobra são lágrimas, nada de bom me traz esse sentimento chamado paixão!

- Meu prezado, é tão simples, tão fácil, só você não vê que aquela bela dama, da qual você menospreza o meu parecer, conquistou você com leves beijos, jeito extrovertido, levou-me aos maiores delírios; e nesse compasso você seguiu comigo e, hoje, não há mais solução: ou se entrega, ou se entrega meu caro turrão!

- Não acredito em tais palavras, não será você a me ensinar aquilo que deveria ser. É um desiludido, perdido em tardes de domingo, mal sabe o que faz! É um vagal por completo, tenta iludir-me nesse momento incerto em que não sei o que fazer. Pensa que sou o quê? Acha mesmo que estou eu apaixonado? Acha que eu sou o que meu caro? Não me entreguei com tal facilidade, não serei eu o primeiro a cair sobre essas suas falsas-verdades. Deixa-me em paz e leva contigo o que não me satisfaz.

- Veja, o sentimento existe, mesmo que você não acredite. Resista o quanto puder, pois o tempo o dirá, a verdade, qual é. Se você não quer se atirar nesse amor, a derrota será sua, a dor será minha, as lágrimas e as conseqüências por você serão todas sentidas. Apesar de tudo, vê se me escuta da próxima vez, pois ela já se foi e você ficou sem ao menos ganhar dela um adeus. Comporte-se e quem sabe um dia eu encontro outro amor vertiginoso e incerto, porém terno, para que um dia o coração não seja o seu amigo indigesto! Dei-lhe o mais puro sentimento, não é minha a culpa se não fizeste nela a verdadeira e sutil mágica.

- Faça com que ame, faça com que sinta, não perca tempo! Toma um pouco de gratidão, pois, na verdade, sem mim sua vida não tem razão!

26 outubro 2011

Primeiro ensaio sobre religião – Os religiosos cristãos


Cada dia que passa eu fico mais enjoado da religião instrumental. Vejo pessoas mais apegadas a modos de ser do que em uma essência racional e sincera de fé. São modelos de vestimenta, de comportamento e um imenso vazio de ações e caráter.

É evidente que há uma opção clara das instituições por modelos conservadores e mecânicos, uma opção clara pela uniformidade. Porém, isso gera falsos religiosos. Os adeptos cheiram a hipocrisia, são um misto de gratidão pública a um Deus o qual não acreditam, em verdade.

As palavras são vomitadas. Mensagens medíocres são passadas. E tudo que possuem é uma defesa inconsistente daquilo que mesmo professam. A realidade se estende sobre a forma como são formados, doutrinados. É uma instituição mecânica que persegue números e não qualidade. As instituições religiosas sobrevivem como um organismo desesperado, que está preocupado em ampliar-se pelo espaço e não em estabelecer-se com consistência.

Esse meio cria o tipo mais desprezível de crente, o crente adestrado. Ele foi adestrado a se comportar de um jeito, a falar de um jeito, se vestir de um jeito, ouvir música de um jeito, se comportar publicamente de um jeito.

Porém, sua essência está completamente distorcida frente aquilo que professa. Pois a realidade é que ele desconhece a essência daquilo que professa. Ele foi ensinado a se comportar e não educado na mensagem transmitida!

É exatamente por isso que o comportamento moral é discrepante – nisso se encontra questões como o relacionamento interpessoal, atitudes que envolvem comportamento ético, aquilo que realmente questiona o caráter e não o comportamento condicionado –, acabam sendo vistos em um véu de hipocrisia pelos não crentes.

Eu decidi me libertar das vias institucionais. As atitudes das instituições estão mais preocupadas em como eu me visto, se meu corpo possui tatuagens, como corto meu cabelo, o alimento que eu como, as músicas que ouço, os filmes vejo. As instituições estão mais preocupadas em suprimir expressões emocionais e de personalidade do que realizar uma transformação de caráter.

E, de uma forma triste, as instituições não perceberam aquilo que, creio eu, ser a essência mais intensa do cristianismo, a transformação de caráter. Quando você transforma o caráter, todo o resto que necessita ser transformado, o será por conseqüência. Não é preciso doutrinação. Não é preciso adestramento. E aquilo que é uma mera expressão de personalidade, continuará.

É preciso também entender que traços culturais são peculiares e que a fé não possui uma cultura ou formato comportamental.

O modelo de culto de igrejas protestantes e evangélicas é cheio de elementos de cultos pagãos, principalmente germânico e saxão em sua liturgia. O formato de missa da igreja católica é repleto de elemento da religião romana. São traços culturais que foram incorporados e adaptados ao cristianismo.

É preciso separar fé de cultura. É preciso proteger a fé da cultura, sem dúvida, pois a cultura pode sim desviar para um sentido contrário da essência da fé. Porém, desde que ambos os elementos sejam contidos dentro de suas próprias esferas, isso não acontece.

Mais do que isso, é fundamental que os crentes busquem uma vivência real a postar mensagens vazias para pessoas que conhecem superficialmente como se isso fosse prova de fé; prova de fé é viver de acordo com o caráter amoroso e ir muito além da roupa de culto.

Terapia


- Boa tarde, eu sou doutor Silveira, pelo que li aqui em sua ficha, você é o Paulo, correto?

- Correto, doutor.

- Então, Paulo, por que fazer terapia?

- Eu pensei que você fosse me dizer isto, afinal, não sou eu que recebo por estar aqui...

(Cinco minutos de silêncio)

- Então, o que te atormenta

- Nada.

- Nada?

- Não exatamente.

- Hum.

- Doutor, não sei mais o que fazer. É uma garota. É a garota.

- Fale-me sobre ela.

- É a guria do ônibus, doutor. Ela está me enlouquecendo, doutor, eu não agüento mais.

- Siga...

- Ela parecia ser a coisa mais linda do mundo, aquele sorriso mascarado, escondido, tentando disfarçar, o jeito solto de rir, aquele jeito meigo de se aproximar...

- E por que você não a agüenta mais?

- Doutor, era tudo mentira! Ela é uma ciumenta! Ela tem ciúme das minhas amigas, das minhas primas, até da minha irmãzinha ela tem ciúmes!? Encana com o meu futebol de Domingo, não pára de falar que eu a troco pelos meus amigos...

- Bem, o ciúme dela realmente não é normal, mas vocês já tentaram conversar? Com certeza ela tem algumas qualidades também, então será que não seria o caso de tentar contornar esse ciúme todo?

- Sim... Ela tem qualidades. Ela tem um bom gosto musical, nós temos boas conversas, ela cozinha muito bem, se interessa bastante por mim...

- Viu só, não é o fim do mundo!

- Doutor, me escuta, é o fim do mundo sim! Ela é meio doida. Às vezes ela enlouquece e inventa de querer discutir a relação e vive fazendo aquelas perguntas fatais...

- Perguntas fatais?

- Doutor, o senhor é casado?

- Sou.

- Então, não há como você não saber...

- Não?

- Claro que não! Sua esposa já perguntou ao senhor se está gorda? Já encanou alguma vez quando o senhor disse “Meu bem, como você está bonita HOJE”? Ou “O que você acha desse vestido”? Ainda o “Você acha minha amiga bonita”?

- Huuuuum... Sim, entendo. Realmente, são perguntas fatais. Nem gosto de lembrar, ontem à noite a Débora me perguntou o que eu achava da mãe dela passar alguns dias conosco...

- Nossa, doutor, não sabia que o senhor também sofria com isto!?

- Rapaz, todos nós sofremos.

- Então, doutor, a pior parte é a confusão, sabe? Às vezes eu não sei se a odeio, se a amo, o que realmente sinto por essa bendita!?

- Fale mais.

- Quando ela não está perto, eu sinto saudades, sabe, a falta mesmo, a presença dela já faz um marco em minha vida. Mas quando ela chega, ela me enche de ódio, de raiva, fica tirando as coisas do lugar, reclama que o meu quarto está uma zona, que eu deveria levar as roupas para o cesto de roupa suja e não fazer o meu montinho ao lado da cama. Reclama que tem muita coisa na mesa do computador, que eu rabisco os livros... Eu praticamente quero esganá-la e jogá-la pela janela.

- A Débora também faz isto comigo. Eu sei como é. Dá vontade de tapar a boca dela com um pote de formol, para que ela apague por alguns dias, até que esse encosto saía dela.

- É doutor. Mas sabe... Depois isso passa, ela senta na minha frente e abre aquele sorriso e não tem como não me derreter. Eu odeio como ela faz o meu ódio desaparecer, não dá pra ficar bravo com ela; ela simplesmente faz tudo sumir, o céu estava cinza, ela olha lá pra fora e vem um arco-íris.

- Vem cá e como é o nome dela?

- O nome dela? Bem, isso eu não sei.

- Como não sabe?

- Então, doutor, ela existe. Mas tudo isso que eu te falei nunca aconteceu.

- Não?

- É que todo dia eu pegava um ônibus pela manhã, bem cedo. Ela estava lá. E eu a olhava, ela me olhava, mas eu sempre fui muito tímido, então, nunca sentei ao lado dela, nunca tive a coragem de dizer um “oi” sequer, nem jogar aquelas conversas fiadas de “como o tempo está feio hoje”. E agora, nem eu, nem ela pegamos aquele ônibus e eu acho que perdi uma das maiores oportunidades de minha vida.

- Então, o seu problema é frustração...

- Não, doutor. Não sei se o senhor percebeu, mas o meu problema é com a imaginação, um tanto quanto fértil... E alguém que imagina esse tipo de coisa precisa de terapia, não acha?

24 outubro 2011

Cotidiano II


Seis e dez da manhã, o despertador grita e, com a delicadeza de um paquiderme, ela o desliga. Mais um dia como outro qualquer.

O banho morno pela manhã. Graças ao Pai pelo gás encanado, pensa. Faz de tudo para não molhar um fio de cabelo; não confia na toca, acha que esse plástico vagabundo engana. Não confia muito na propaganda do sabonete, por isso, compra o que sua mãe sempre comprou ao invés do que parece ser melhor na propaganda. Mas testar, nunca testou.

Ao sair do banheiro, enrolada a duas toalhas enormes, confere o esmalte, apanha os cremes e se assenta à penteadeira. Lá vem toda uma seqüência usual. Creme às pernas, ao rosto, às mãos, ao cabelo, creme ao creme. Muito creme.

Após fechar os vasilhames apanha a escova. Escova a direita, a esquerda, e escova mais um pouco. Na realidade perde uns dez minutos escovando os cabelos. Quando se convence de que melhor não fica, vai se vestir. Nessa brincadeira já são sete e vinte, e as oito ela tem que bater o cartão.

Vai à cozinha, abre a geladeira, pega um suco qualquer, nem presta atenção na cor da caixa, toma sem sentir o sabor. Que sabor? É tudo sintético. O suco de limão parece o de groselha e tem gosto de uva, o de uva parece o de limão e tem gosto de groselha, e o de groselha parece o de uva e tem gosto de limão.

Come uma maçã e se dá por satisfeita. Um café da manhã esplendido, ao menos para os seus padrões de dois minutos.

Por sorte, mora a dois quilômetros e meio do trabalho. Iria a pé, se não houvesse um calor infernal, se sua produção não fosse toda devastada pelo cruel vento que há lá fora. Vai de carona. Ela detesta o rapaz que dirige o carro. Ele sempre faz cantadas bobas, já roçou um dedo em sua coxa ao trocar de marcha e por isso levou um tapa.

Labutava ao trabalho, secretária executiva não tem vida fácil, principalmente quando seu patrão é egocêntrico e crê que sua secretária é uma agenda ambulante que deve tomar conta dos detalhes de sua vida. A secretária é a responsável para que tudo dê certo nesse caos. Ao menos, ele pensa que o mundo funciona assim. O mundo pode até não funcionar assim, mas seu escritório de contabilidade...

Dentro de toda essa correria, o escritório aos poucos se esvazia e o patrão deixa sobre sua mesa uma série de arquivos para que ela organize, isso sem falar na agenda do dia seguinte para finalizar.

Ter que fechar o escritório era algo irritante, muito desgastante, não era a sua função e ficar até tarde, não ter tempo para si, era revoltante. Revoltante até o dia que descontava o contracheque.

Compensa ser explorada se pagam bem, não? Ao menos, todos seus vícios eram alimentados. Podia comprar suas roupas, bolsas sapatos, maquiagem, todo o luxo que alimentava seu vício vaidade podia ser feito sem grande peso na consciência. Pois algum peso sempre havia, principalmente quando aparecia no dia vinte a fatura de seu cartão de crédito.

Mas até então seu trabalho seguiria a dar orgulho a tédio. Documentos e reuniões a marcar, o silêncio e a escuridão de um escritório vazio. Ela podia até ouvir a rua zombar de sua solidão, enquanto se prendia em algo que detestava fazer. Ela odiava escritório. Em suma, acredita que qualquer pessoa que goste de estar num escritório não é normal.

Ah! Como ela gostaria de estar à beira-mar, passeando descalça com os pés beijados pela ponta do oceano que desemboca no último tocar na areia, ouvir a onda quebrar. Ah! Como ela queria! Pena que não podia.

Sentia o desejo de desaparecer, de mudar, de sumir de toda essa pugnação indigesta por ninguém que realmente faça parte de sua vida. Está cansada em esfacelar-se por estranhos.

O emprego era bom. Perto de sua casa, bom salário, seguro, com todos os direitos assegurados e todos os conformes em dia. Mas era um saco.

Terminou de pensar, agora faltavam apenas umas dez páginas para organizar. Mas para que organizar? O patrão nunca olhava os arquivos!? Ficavam num andar a baixo, empoeirando sobre as prateleiras. Para que tanto trabalho?

Para que a poeira tivesse seu espaço, afinal, poeira coitada, malograda por todos, precisava do seu espaço! Mas para isso a pequena tinha que ficar até mais tarde lá no escritório, fazendo o trabalho que sobrou e que ninguém realmente precisaria fazer. Era por caridade a cada tufo de poeira carente! Ação social de uma empresa, incompreensível o mau gosto com que a guria levava essa obra...

Depois de pensar mal de Deus e do mundo, ela acaba. Tranca tudo, e sai. Vai andando para casa, em meio ao silêncio da ausência do trânsito que já acabou há algum tempo. São quase dez da noite.

Ao passar frente à padaria resolve tomar um café e comer algo já que não há janta em casa, já que não está disposta a preparar nada nessa hora.

Come uma pequena refeição e um chocolate na sobremesa. Chocolate, segundo ela, dependendo de qual for marca, é tão bom quanto sexo. Bem, eu nunca vi nenhuma mulher a ter orgasmos comendo chocolate. Mas se for ela quem diz, quem sou eu para discordar?

Após ter seus delírios do sabor ao leite, vai descendo a rua para enfim chegar a sua casa. O sinal está amarelo, longe vem um carro preto, meio devagar, mas ela nem o olha, apenas mantém os olhos fixos ao farol.

É atropelada. Caída ao chão, passa alguns minutos desacordada.

Ao acordar vê um rapaz olhando-a fixamente. Ela se enche de raiva, vê que seu vestido rasgou, que sua blusa perdeu uns dois botões, ficara suja. Sem falar nos arranhões nos braços e pernas que ardiam.

Vendida ao ódio, só queria degolá-lo, até que ele concebeu seis palavras que lhe desconcertaram: “Meu Deus, como você é linda”.