05 fevereiro 2014

Bandido bom é bandido morto? E o Aladdin?

Foto da Carta Capital
Sinceramente, eu entendo que alguém como Rodrigo Constantino seja incapaz de enxergar o simbolismo racista que é um jovem negro ser amarrado nu a um poste e agredido violentamente. É difícil para alguém que vive do alto de sua coluna da revista Veja, de uma crença firme em uma liberalismo econômico exacerbado que mal consegue fazer frente a argumentos de Ciro Gomes e Tico Santa Cruz, que pinta a sociedade como igual, perceber o quão ilustrativa essa imagem é a remontagem do tratamento escravista legalmente abolido há mais de um século.


Não é uma questão de culpar o ambiente ou proteger bandido. É enxergar o comportamento da própria sociedade, que justifica os fins que interessam de forma contraditória e hipócrita. A ação violenta contra o criminoso pobre e negro é aplaudida e defendida em coro. “Ser bandido é uma escolha”, é o argumento do colunista da Veja. E se ser bandido é meramente uma escolha, as consequências dessa escolha, no caso sofrer tal violência, é algo natural e aceitável pela sociedade. Pelo menos na cabeça do colunista e de quem o segue.


O que o indivíduo é e se torna não é um determinismo ambiental. Porém, há limites, incentivos e a construção de condições para que alguns possam se tornar diretores de uma empresa ou trombadinhas. Não é uma mera consequência? Não é, mas não é algo simplesmente escolhido.


É mais fácil seguir um caminho correto quando todas as condições para ter uma vida próspera são ofertadas. A questão do mérito se torna uma alternativa razoável quando há oportunidade relevantes a conquistar. Quando se tem acesso a educação, se possui uma estrutura de vida (casa, comida, conforto), ser bandido é uma opção.


É uma opção para essa pessoas, pois, mesmo com tudo isso, se tornam corruptíveis. Sonegam imposto, pagam “um café” para o guarda de trânsito, participam de esquemas fraudulentos, matam a namorada, abusam sexualmente da filha adotiva.


É fácil odiar o bandido pobre. Ele é agressivo, ele é violento. E violência se paga com violência, pelo menos no código de Hamurábi, essa “tão moderna” normativa de organização social. É fácil não se importar com a morte de quem praticou violência. É confortável construir uma relação entre causa e consequência nesses eventos.


Porém, o quão fácil é escolher uma vida sem crime quando não se tem a oportunidade do estudo? Quando sua carreira será de vendedor de doce no metrô? Ou flanelinha? Quão fácil é escolher o caminho honesto quando não se tem uma refeição para comer todos os dias? Quando a noite não há cama, travesseiro ou sequer casa para repousar? Quando não se possui uma família, pai ou mãe a olhar por você?


Não é uma questão de justificar as ações criminosas de um bandido, mas entender os fatores estruturais da sociedade que estimulam que exista um número grande de bandidos violentos oriundos das classes mais pobres. Entender que essa problemática não é limitada ao indivíduo, mas sim é uma expressão dos problemas estruturais da sociedade.


O criminoso não é a origem. Ele é uma prática, uma manifestação da doença que nossa sociedade sofre. Ele é um sintoma. Matar o indivíduo, acorrentá-lo nu em praça pública, revidar a violência, nada disso realmente será solução para a violência. É olhar para o caso isolado, é tratar um sintoma.


03 fevereiro 2014

Isso é pirâmide?

Primeiro vão lhe dizer "é uma excelente oportunidade de negócio". Sempre virá dentro de um discurso muito plausível, com números e dados estatísticos críveis. "É um mercado que movimenta bilhões por ano". Então, vão lhe apresentar uma solução mágica, um serviço de primeira linha ou um produto diferenciado, mas só falaremos dele por 10 minutos.


Depois, 1h50 de palestra sobre os ganhos, lucros e sobre a posição que você terá dentro de um organograma em que você precisa convidar outras pessoas para participarem do negócio, e assim subir posições nessa hierarquia e ganhar mais dinheiro, em consequência.

Então você verá muita conversa sobre viagens, dinheiro, carro, mulheres. Todos ganham. É negócio do futuro, uma visão moderna de negócio, desenvolvida a partir do pensamento de um escritor notório ou de uma mente brilhante de negócios. Mas tem um detalhe, o produto não pode ser vendido no varejo. Você não pode ofertar seu serviço pela empresa. Ou seja, nada de vender para um comércio ou pelo CNPJ deles. Você não pode ser um distribuidor, apenas pode fazer a venda direta ao consumidor. Ou seja, você é consumidor deles e não as pessoas para quem você vai vender.

Você acha que estou falando do seu negócio? Isso é a descrição de um esquema de pirâmide. No caso, são característica de casos notórios dos anos 90, a Gallus e a Amway. Se você está entrando num negócio ou está tendo parte em algo parecido, cuidado, você está entrando no esquema de um estelionatário e participando de crime contra economia popular, pois esse tipo de negócio não se sustenta.

Não existe questão de porcentagem do negócio que gira em torno de produto e porcentagem que gira em novos membros. Qualquer porcentagem que gire em torno de novos membros compromete a estabilidade de crescimento do negócio. A matemática é simples. 


O dinheiro real que entra no negócio para os revendedores é o dinheiro das vendas. E esse dinheiro é repartido entre a pirâmide e com a empresa produtora. Só que desta forma quem vende sustenta quem o convidou e uma escala hierárquica que exige a compra rotineira de produtos garante lucro para o produtor. E uma obrigação de venda para o revendedor, que não possui qualquer segurança ou suporte real.

O problema também se encontra que é impossível continuar expandindo essa rede. Ela possui uma limitação numérica que irá se esgotar e em consequência quebrar essa estrutura de negócio. Existe uma lógica matemática em economia que quando o negócio depende de uma adesão em PG de novos participantes, ele possui um potencial de saturação e em consequência de colapso. Há um limite de adesão ao negócio, esse sistema irá parar e a últimas pessoas a aderirem ao negócio receberão um grande prejuízo. 


Não caia na história do Marketing Multinível. Dizer que alguns ganham bônus sobre a venda de outros vendedores é diferente de pirâmide apenas por causa do produto ser viável é ignorar que a definição de pirâmide financeira está no modelo de negócio e não no produto ou serviço.

Há apenas duas pessoas que ganham sempre com esse tipo de negócio: o dono da empresa que fabrica seus produtos que não podem circular no comércio de varejo e ganha um público cativo, e as pessoas que iniciaram a pirâmide, pois elas não trabalham na real venda do produto, apenas se empenham na continuidade do crescimento da pirâmide (seu esforço é sempre no auxílio de entrada de novos membros, você não verá no discurso deles questões profundas sobre a venda do produto, como logística, impostos, legislação...) e em seu equilíbrio de distribuição de membros.

O trabalho deles é fundamental, pois o crescimento constante da pirâmide criará a sensação de sucesso e prosperidade para o negócio e sustentará boa parte dos membros por um longo período, o suficiente para que façam sua pequena fortuna e sumam do mapa quando tudo vier ao chão. Por isso a sensação de estabilidade e prosperidade coletiva da pirâmide é fundamental para o negócio.

Esse trabalho de equilíbrio é fundamental, pois desta forma os membros da pirâmide terão a sensação média de um negócio prospero, quando na verdade essa é uma engrenagem que ruma ao colapso.

Nenhum negócio que venda um produto ou que ofereça um serviço que não tenha sua lucratividade ligada diretamente ao produto ou serviço é realmente estável. Ainda mais quando você tem que colocar o seu dinheiro para realizar o estoque e não utiliza giro do próprio produtor para atuar como distribuidor. Você se torna responsável por aquele produto de possui todas as responsabilidades de uma empresa ao repassá-lo. Não vai ser a empresa que você acha que é parceiro a responsável pelo que acontecer com o seu cliente, mas você que vendeu um serviço que você adquiriu. Isso é muito comum no mercado. Empresas compram produtos de outras e revendem para o varejo. Porém, com qualquer defeito, problema de uso ou até mesmo dano ao cliente final, é responsabilidade do varejista, vendedor final.

Fique esperto! Esse tipo de esquema só vem a tona como financeiro instável quando a instabilidade dele eclode. Até lá, os proprietários contratam celebridades, como a Galos fez como o Antonio Fagundes, compra publicidade e matéria em revistas, realiza a publicidade da prosperidade de seus membros do topo da pirâmide. Construir uma imagem de empresa sólida e honesta é muito fácil, o mercado aceita isso de bom grado, desde que você tenha recursos para financiar isso. Revista não pede atestado de idoneidade para exibir publicidade e tampouco para fazer uma matéria comprada por um bom departamento de RP.


Análise onde você irá investir seu tempo e seu dinheiro para não ser vítima da própria vontade de empreender.


27 janeiro 2014

Só vive quem fica louco

As mãos estão tão sujas que estão mais que negras, estão piche. Na face, também há traços de graxa que mostram que um banho é coisa que não se vê faz dias. Os corpos magros são de quem come esporadicamente. A gente faz o corre, vai indo no dia até o dia acabar. A gente só quer chegar no final do dia com os nossos trocados. Ai a gente vê o que faz. Ou compra algo pra comer quando alguém quer vender ou arruma algo pra deixar acesso. Tem que ser assim.


São dois irmãos. Um de doze, o mais velho, o outro de nove anos. Durante os dias, ficam na Zuquim, na zona norte de São Paulo, fazendo malabares ou mal lavando parabrisas, arrumando uns seus trocados. Tem dias que arrumam o suficiente para todos comerem. Ficam num grupo de sete garotos, nenhum deles têm mais do que quatorze anos.


A noite a gente passa onde der. Ninguém aqui tem casa. Não mais. Todo mundo fugiu por algum motivo. A gente porque o pai bebia e batia em todo mundo. A mãe fugiu, mas ele não deixou ela levar a gente. Mas a gente deu um jeito e fugiu também. Depois, não sabe mais o que aconteceu. Mas acho que eles devem ter se matado ou algo assim. Mas tanto faz, a gente não importava muito lá mesmo. Hoje, é melhor que antes. Hoje a gente não apanha. E faz o corre que a gente quer. Antes a gente ficava em casa preso, igual bandido.


A gente não vai nesses abrigos (albergues) porque não pode. Menor de rua que vai pra lá não volta. Eles mandam para aquelas casas lá. Se a gente for lá, vão separar a gente. Vão mandar ou de volta pro pai ou pra casa de alguém qualquer ai. A gente não quer. A gente já se vira. A gente não precisa que alguém diga pra gente o que fazer. A gente trabalha aqui, tá vendo? Eu posso limpar o seu carro, é trabalho!


Mas é o corre que eu quero. Eu podia roubar, matar ou traficar, tem um monte de moleque igual nós fazendo isso. Na hora que a gente quisesse podia fazer, sabe? Mas a gente não quer, a gente acha mais legal fazer isso. A gente não precisa de mais agora. A gente come quando quer. Cheira quando quer. Brinca quando quer. Faz o corre quando quer. E não apanha de ninguém porque a gente protege um o outro. A gente aqui é tudo amigo, tudo família. Tamô juntos, tá ligado?


A gente já está um tempo nisso. Ah, tem uns dois, três anos, não sei dizer, mas é mó tempão. Quando está frio? Ah, a gente compra algo pra cheirar, né? Ninguém vende cachaça pra moleque igual nós. Mas pra conseguir droga rola. Traficante não pede RG, né? Daí a gente usa e não sente nada. Quem não usa, apaga e não aguenta. Ou vai pro abrigo e nunca mais volta ou vai pra ambulância e nunca mais volta. O morre mesmo. Só vive quem fica louco, tio.


Mas precisa. Se você cheira (cola), você não sente nada. Você fica igual o super-homem! Pode até tomar uns capote que não dá nada. Daí a gente só pega papelão das lojas por aqui, os crentes sempre dão cobertor pra nós e a gente aguenta bem. Daí tem madrugada que passa uma tia e dá pão, leite. A gente se vira bem no frio.


O que é bom? Bom é o dia que uns tios dão lanche do MC pra nós. Como é pertinho, tem dia que a gente tá com fome e fica lá perto. Daí dá uma chorada e sempre alguém ajuda, dá pelo menos um hambúrguer ou uma batata. Mas o MC não dá nada não. Não deixa nem a gente entrar. Nem quando a gente tem dinheiro. A gente tenta, mas quando entra já enxotam a gente pra fora. Tinha até uns tempos atrás um gerente que era gente boa, ele pedia pra gente esperar do lado de fora e às vezes dava pra gente uns negócios que fizeram errado. Mas ele foi embora daí e ai nunca mais ninguém foi com a cara da gente. Mas também, tudo sujo assim, né? Nada a ver com os playboyzinhos que vão lá.


Não, antes de ir pra rua eu nunca tinha comido MC. Meus pais não saíam com a gente. Não tinha dinheiro, se pá. Meu pai só bebia e ia no jogo. Daí, se o Corinthians perdia, era ruim, porque ele bebia mais e voltava bravo. É por isso que a gente não é Corinthians. Porque quando perdia dava muita raiva, porque a gente já sabia que ia apanhar.


Sim, a gente gosta de jogar bola. A gente até vai jogar ali no parque (da Juventude) às vezes. Junta com uns moleques que vem aqui e joga. É divertido. A gente não joga bem, mas gosta de jogar. Só é chato jogar descalço. Porque de sandália não dá, né? Fica tudo torto, pisa errado, chuta mal. E às vezes machuca o pé. Mas a gente se diverte. E faz o corre, né? Aliás, tio, vai rolar o lanche mesmo, né?

*Esse é o terceiro texto de uma sequência de entrevistas que fiz em 2013. Nelas, apenas pessoas sem nome, sem rostos, as sombras da sociedade. Prostitutas, mendigos, presos, meninos de rua, vendedores de doce do metrô.

23 janeiro 2014

Porque o meu samba é cada dia não morrer

E sentia o sabor fresco do ar. Mesmo o ar não tendo nada de fresco. Estava completamente poluído, como se tivesse sido temperado de forma arquitetada pela fumaça de cada carro da cidade. Porém, depois de cinco anos sem sentir esse sabor de poluição, ele era quase divino.


No dia que pode cruzar aquelas paredes, ninguém estava à porta. Não que ele sentisse qualquer decepção ou rancor por isso. Havia três anos que ninguém o visitava. Sua namorada à época resistiu por apenas dois meses, depois de descobrir o quão incomodo era ser revistada de todas as formas e jeitos, nunca mais voltou. Depois de três meses, nem as ligações ela atendia mais.


Mas triste foi o dia que a mãe não apareceu. Era Julho. Foram três semanas seguidas que ela não foi até que lhe dessem a notícia. Até hoje ele preferia que a mãe lhe tivesse desenvolvido ódio, que o quisesse morto e por isso não atendesse ligações, nem o visitasse. Nada seria mais cruel do que ela morrer e não poder estar lá. Não poder se despedir. Não poder dar adeus. Continuar com a figura de uma ausência que nunca será solucionada. Uma lápide não consegue encerrar ao coração quem se foi sem despedir. É só mais uma repetição gritante da ausência.


Mas em um dia como esse, esperava pelo menos alguém. Um amigo, qualquer um dos irmãos ou primos. Tudo bem que nenhum deles o visitou em nenhum dos cinco anos que esteve preso. Ninguém quer se submeter a posar na frente do presídio por causa de um traficante vacilão.


Sobreviver na prisão não foi difícil. Hoje, você só morre lá dentro se for um idiota. E São Paulo não é o Maranhão. Aqui é como se fosse outro país, outro mundo. A gente fica amontoado? Fica. Tem mais gente do que cabe? Tem. Mas o que mata no sistema ou é outro preso ou é polícia. Os carcereiros estão mais a fim de tornar sua vida uma merda do que acabar com ela. É mais divertido torturar o rato de laboratório que matá-lo. Não que os presos não sejam substituíveis, todos são. Mas se você reduzir o número de presos, você perde um dos principais fatores de tortura e jogo psicológico, que é a disputa por espaço. Deixe todos desconfortáveis que os jogos psicológicos ficam mais intensos.


Mas eu era na minha. Ficava no meu canto, jogava minha bola e abaixava minha cabeça. Sempre fui peixe pequeno. E quando o aquário é grande, você nada só entre as pedras, longe do caminho dos grandes. Nem para o bem, nem para o mal. Você não quer ser um peão do jogo quando os tubarões decidem que é hora de jogar. Se for para sacrificar alguém, a primeira opção é sempre o peão. Porque peão tem um monte. Tem fábrica de peão. Favela faz peão todo dia. E também tem uma razão para sempre ter pivete novo entrando na parada. Na guerra, quem morre mais, coronel ou soldado?


Por isso que lá dentro o meu samba era de ficar vivo. Eu ficava ali no meu sapatinho, quieto, porque enredo era de cada dia não morrer, não pular no cruzado de ninguém, nem me sujar por ninguém. E por isso você paga um preço. Quem não samba de um lado, não ganha favores. E quem não ganha favores, não sai mais cedo, nem tem advogado bacana. Só quem dança no batuque do partido, entende? Quem quer largar essa vida e sair limpo de lá, a história é diferente. Tem de lutar sozinho contra o sistema. E o sistema não perde. Ele não sente, nem se importa, tudo que você pode fazer é não deixar ele foder ainda mais com você. Eu saí em cinco. Poderia ter ficado muito mais. Era só não ter caído no gosto da pessoa errada e pronto, ficava mais uns três, fácil.


Como eu fui preso? Foi quando eles fecharam a boca. E a merda foi eu estar com a blusa cheia de tiro. Estava carregando o suficiente para fazer nevar na quebrada inteira. E eles chegaram arrepiando, jogando o carro em cima, com tiro pro alto colocando todo mundo no chão. Pegaram as armas, limparam tudo.


Como você entra nisso? Igual qualquer um começa a usar (drogas). É um amigo que está nessa merda que faz você ir. O primeiro moleque que apareceu com corrente e Nike convenceu metade dos pivetes ali, só por estar usando um tênis que custava a mesma coisa que a geladeira de casa que meu pai tinha parcelado em doze vezes no carnê. Você vê ali poder, porque é um meio de você conseguir rápido tudo aquilo que todo mundo diz para você que você precisa ter. O dinheiro rola fácil até para aviãozinho. Avião costuma tirar pelo menos tanto quanto o trabalhador. Você acha que não é convidativo?


Ele fica ali, empinando o pipa, joga pra um lado, pro outro e avisa de tudo pra boca. Ganha o troco dele. Por ficar empinando um pipa. Você acha que ele quer isso ou ir para escola para tirar um diploma para limpar a privada do playboy? Quantos da favela você acha que chegam numa faculdade? Quantos terminam? Quantos viram chefe? Na minha quebrada nenhum. Quando o cara cai no tráfico, ele é o negócio, ele tem o poder, ele tem a arma e tem a droga. E isso tudo vira dinheiro. Dinheiro que ele nunca iria ter. O sistema diz para você que não vale a pena ser honesto. Se você for, vai ter que se conformar em ser o degrau que todo mundo vai pisar para estar mais alto.


Agora? Eu faço meus corres. Aluguei aqui minha casinha no pé da pista. Fiz da minha garagem uma borracharia. Também faço uns bicos de mecânica. Aqui no fim do mundo só tem carro velho. Então sempre tem carro quebrado. Dá pra viver. Ninguém quer saber se o cara que remenda o seu pneu furado cumpriu pena. Quer o pneu pronto e ir embora. Quer que eu seja rápido. Vai embora logo, normalmente, nem meu nome pergunta. É bom. Dá para esquecer quem eu sou. Dá até para acreditar que poderia ter sido diferente desde o início. Que eu poderia ser um degrau que as pessoas não evitassem de pisar. Porque às vezes ser degrau é bom. Faz você sentir parte, mesmo que seja só para ser pisado. Pelo menos você está lá.


*Esse é o segundo texto de uma sequência de entrevistas que fiz em 2013. Nelas, apenas pessoas sem nome, sem rostos, as sombras da sociedade. Prostitutas, mendigos, presos, meninos de rua, vendedores de doce do metrô.

21 janeiro 2014

Uma garota chamada S.

Eram duas da tarde. O calor agia como uma pressão sufocante que fazia o corpo se render ao sofá. A pele tentava respirar cada migalha de vento soprado pelo circulador. O suor eclodia visceral com a eminência da sede que afligia. Era um domingo vazio, quieto, calmo, tedioso. Pouca gente trabalha de domingo. Ela trabalha. Ou pelo menos tenta.


Dias assim os clientes fogem, disse. Eu fui apenas uma frustração, alguém querendo entrevistá-la. Porém, entre todas, era a que menos revirou os olhos. Determinou o preço; me dê algo para beber e eu converso com você, não tenho nada para fazer mesmo.


Olhos tão negros quanto sua pele, sorriso com dentes perfeitos, daqueles que deram a sorte de não precisar de um aparelho pelo qual jamais poderia pagar, S. diz que sua vida foi um desperdício da boa sorte.


Essa vida não é escolha, não para mim. Essa vida é burrice. Eu caí aqui porque sempre preferi a pior escolha. Não, não, não tem nada de droga. Eu não uso, sou mãe, está louco? Meu problema sempre foi outro. Meu vício era em cafajeste.


O tom assertivo, cheio de irritação, era de uma fala de quem não estava incomoda por falar, mas de quem se revoltava consigo mesma. A leitura de si e de sua realidade era muito clara para S., ela sabia perfeitamente quem era. Era tudo muito claro, cristalino. Ela enxergava cada passo errado e tinha plena consciência sobre a quem culpar.


S. está na faixa dos trinta e dois, trinta e três anos. Em sua carreira, é a idade da decadência. Ela mesma diz, que está ali por ser fruta usada, que seu tempo é de descobrir uma alternativa, algo que lhe permita sustentar três filhos de três pais diferentes.


Onde tudo começou? É difícil falar. Mas se tivesse que escolher uma memória onde comecei a destruir minha vida, vou dizer que foi aos 14 anos. Eu era a atrasadinha da minha sala. Sabe como é, escola pública, tudo uma zona, minha mãe era evangélica, eu achava que era também, até descobrir que Deus não ama as putas, mas tinha aquele negócio, né? A gente sempre olhava pros menininhos como se eles fossem alguma coisa. E homem, homem é sempre homem, quer te comer e pronto. E não era diferente naquela época, era até pior. Pior porque eu não tinha malandragem, não sabia como essas coisas acontecem. Daí, foi só um moleque me pegar na lábia dele, que eu virei acessório. Ele ia fumar um chá atrás da escola, eu tava lá. Ele ia jogar bola, eu ia atrás. Caguei com a escola, caguei com os estudos. Começou ali, por causa de homem. Por causa de homem eu larguei da vida enquanto o homem me descartava. É assim, e quando ele te larga e você largou tudo, quem é você?


É aquele momento que ela para, toma um gole de cerveja, e fica em silêncio por uns dois minutos. Pensativa, suas feições mudam. Seu rosto perde os traços de irritação para saltar a tensão num gritante linear de tristeza.


Meus professores até ali diziam que eu era inteligente. Meu pai queria até me colocar em faculdade, sabe? Fazia planos. Dizia que eu iria aonde ele jamais poderia ter ido. Sorte que o velho morreu cedo, senão eu matava ele de desgosto. Imagina, ele acreditava que eu iria longe. Se ele tivesse visto tudo que eu fiz comigo mesma, para aonde eu me levei, morria só de frustração. Mas era bom, sabe? Quando alguém acreditava que você poderia ser algo, algo maior, alguém melhor. Pena que eu nunca me vi como ele me via.


Quando eu engravidei? A primeira vez eu já estava bem mais velha, com 22. Não foi isso que estragou minha vida, meus filhos não têm culpa. E não, eu não engravidei por ser puta. Nunca vacilei com cliente, não faço as coisas sem (proteção). Foram todas cagadas mesmo. Não pelas crianças, elas não têm culpa. É cagada por causa dos pais.


A da primeira está morto. Porque o primeiro era bandido. Mas nem pra escolher bandido direito eu sirvo. Escolhi logo dos ruins. Ruim porque ele era ladrãozinho. E por isso morreu. Foi tentar roubar polícia, já viu né? O segundo não dá para falar muito. É um bêbado inútil. Por causa dele que eu virei puta. Não comecei cedo. Se tivesse, tinha aproveitado melhor, tinha ido trabalhar nas casas um pouco mais caras. Agora eu estou velha. Não estou mal, mas estou velha. Ninguém quer pagar R$ 200 numa neguinha de 30 anos. Tem muita lorinha de 20 que dá para esses caras para pagar a faculdade bacana. Se eu fosse uma puta esperta, tinha feito isso. Mas não, fui ser puta para bancar bêbado e sustentar dois filhos. Até que cansei de sustentar ele e me foder aqui, sabe?


E o terceiro? O terceiro? O terceiro fugiu. Ele é do Maranhão, então acho que ele fugiu para lá. Quando eu conheci, estava tentando largar. Ele queria que eu largasse. Disse até que iria assumir meus filhos. Ele era pedreiro, tinha vindo para cá trabalhar nessas construções de prédio, que estava tendo muito nos últimos anos. Aqui estavam pagando bem o peão de obra. Mas ele fugiu. Não, ele não fugiu de mim. Fugiu da cagada que ele fez. Ele errou alguma coisa numa obra e matou outro peão. Daí fugiu. Saiu um dia para trabalhar, daí eu soube que ele fugiu pela polícia. Nem passou em casa. Desapareceu. Nunca mais tive notícia. E me deixou com mais filho, aquele sacana.


E daí você voltou? Voltei. São três moleques pequenos. Minha mãe cuida para mim, mas como eu faço para pagar as contas? Eu não sei fazer nada. Poderia até aprender, mas quem vai dar um emprego para mim com mais de trinta na cara e sem nada na carteira? E se tivesse carteira, meu único registro seria puta. E ai, quem quer uma puta no escritório? Nem caixa de mercado eu seria se descobrissem o que eu faço.


Sabe por que? Não, não sei. Porque todo mundo come uma puta, mas ninguém quer a puta em casa. A gente é descartável, é por isso que vocês pagam. Não é pelo sexo, é para poder usar e jogar fora. O preço é para jogar fora. É o prazer de atirar na lata do lixo depois do que você queria.


Como assim? Qualquer menininha que você saia e coma, vai ter uma monte de coisa depois. Tem que conversar, tem que conviver e vocês homens não querem nada disso. Vocês querem apenas gozar e jogar fora. Depois que vocês comem, acabou, vocês já fizeram tudo que lutaram, vocês não conquistam uma mulher porque querem a mulher. Vocês querem usar a mulher e depois que vocês usam, não sabem mais o que fazer com ela. Ela parece que não serve para mais nada, não é? Você acha que eu estou errada? Se estivesse, não tinha tanta puta.



*Esse é o primeiro texto de uma sequência de entrevistas que fiz em 2013. Nelas, apenas pessoas sem nome, sem rostos, as sombras da sociedade. Prostitutas, mendigos, presos, meninos de rua, vendedores de doce do metrô.

14 janeiro 2014

A culpa dos rolezinhos

Existem máximas que estão eternizadas em um discurso que todo brasileiro escuta desde que nasce. “O Brasil é o país do futuro”, “Somos uma nação miscigenada e por isso no Brasil não há racismo aqui”.São contos que muitos crescem acreditando, principalmente quem nasce do lado rico e branco.


Mas a realidade brutal que ter direitos é um sinônimo de ter poses. Seus recursos definem até onde você pode ir, quem você pode ser, com quem você pode falar, onde você pode estar, o que você vai comer, com quem irá se divertir, as pessoas com quem poderá partilhar um elevador.


O Brasil é o país da carteirada. É o país do “Você não sabe quem eu sou”, “Você sabe com quem está falando”. É o país onde sempre se cria um degrau para preservar o direito de quem é elite há gerações. É o país onde um perfume não é bom, porque aquela marca também vende para os pobres da classe C, mesmo tendo a Reese Witherspoon como garota propaganda.


Existe uma cortina de vapor que no passado era enxergada como uma barreira física pelos pobres filhos da periferia. Havia o universo dos ricos que se determinava pelo seguinte item: Aquilo que despertamos desejo em todos, porém que não permitimos acesso, consumo e uso a maioria. Assim se estabeleceu a discriminação moderna, em que coisas simples foram separadas para poucos e isso passou a ser esfregado na cara de todos pela cortina de vapor, como forma de valorizar e glamorizar a construção de um status da classe mais rica.


Mas ao perceber que a parede de vapor não era física, jovens resolveram fazer um rolê no pico dos outros, porque tudo que havia separando eles de um espaço público era a porta de entrada, que era aberta a quem tivesse pés ou rodas.


E eles entraram, com suas roupas, com seu dialeto, com trejeitos. Mal sabiam que o conto se desfazia. Esse país de todos é, na verdade, de alguns. Essa nação sem racismo, possui uma discriminação intrínseca muito mais forte, a social. Você pode ser negro, desde que travestido de branco. Não importa sua cor, importa quanto você ganha, como você se veste, como você fala, o que você consome e como você consome.


A verdade é que a vida hoje tem preços. O sistema determina tudo que você pode ser por quanto você pode pagar. Se você não pode pagar, você não será aceito. Não terá entrada. Se entrar, mesmo que em um espaço dito público, será rechaçado. Isso porque não existe mais espaço público. Todo espaço compartilhado na verdade possui um preço. E o preço é pago determinado naquilo que você pode pagar em aparência. Você compra seu passaporte para o Shopping JK a partir de como você se veste e como você anda, fala. Tudo isso é visto como um fator interligado que determina o seu potencial de consumo. Pois esse espaço compartilhado não é de convivência, é de consumo.


Você quer culpar o jovem por invadir o shopping? Ele não pode invadir algo que é aberto ao público. Você quer culpar alguns por quebrarem um loja e roubarem algo? Você está mirando numa consequência e não no problema. Alguém realmente é culpado por haver rolezinhos. Não seria preciso haver rolezinhos. Não se as pessoas fossem tratadas de forma igual e não através da aparência do poder de compra. Não se o mercado não trabalhasse numa lógica de exclusão dos pobres como um meio de gerar valor a ser explorado e cobrar de você um valor abusivo, muito superior ao preço real e justo. Não haveria rolezinho se alguém não tivesse que ser excluído.



No final, se os rolezinhos acontecem, a culpa é de qualquer um ali naquele shopping, menos dos jovens que o praticam. Eles são uma mera reação. É como uma alergia, seu corpo gritando quando entra em contato com algo estranho. Esse jovens são a reação de um corpo invadido por algo malicioso, eles são um grito de uma classe violada por uma lógica elitista e cruel. Eles não são causa, são consequência

E a menos que a sociedade identifique isso e passe a trabalhar significativamente nos abismos de direitos e acessos para maior parte da população, outras explosões sociais explodiram na cara dessa classe A nariz empinado. Seu mundo será cada vez mais invadido. Aos poucos, ele será invertido e colocado em conflito, pois será atropelado por uma realidade que será criada por uma orgânica ação popular. E teremos rolezinhos de tudo quanto é tipo e em tudo que há de lugar. E quem criou o monstro precisa aprender a com ele lidar. Não de forma violenta, não de forma repressiva, mas de forma inteligente e inclusiva, pois hoje o rolezinho também é consumidor. Talvez hoje apenas de um sorvete na praça de alimentação, um boné e uma camiseta, mas é consumidor também. Eles querem fazer parte, querem ser alguém nessa lógica de consumo. Isso é criação do próprio mercado.

Então fica aqui a dica, procure o culpado certo para o dedo apontar.