21 janeiro 2014

Uma garota chamada S.

Eram duas da tarde. O calor agia como uma pressão sufocante que fazia o corpo se render ao sofá. A pele tentava respirar cada migalha de vento soprado pelo circulador. O suor eclodia visceral com a eminência da sede que afligia. Era um domingo vazio, quieto, calmo, tedioso. Pouca gente trabalha de domingo. Ela trabalha. Ou pelo menos tenta.


Dias assim os clientes fogem, disse. Eu fui apenas uma frustração, alguém querendo entrevistá-la. Porém, entre todas, era a que menos revirou os olhos. Determinou o preço; me dê algo para beber e eu converso com você, não tenho nada para fazer mesmo.


Olhos tão negros quanto sua pele, sorriso com dentes perfeitos, daqueles que deram a sorte de não precisar de um aparelho pelo qual jamais poderia pagar, S. diz que sua vida foi um desperdício da boa sorte.


Essa vida não é escolha, não para mim. Essa vida é burrice. Eu caí aqui porque sempre preferi a pior escolha. Não, não, não tem nada de droga. Eu não uso, sou mãe, está louco? Meu problema sempre foi outro. Meu vício era em cafajeste.


O tom assertivo, cheio de irritação, era de uma fala de quem não estava incomoda por falar, mas de quem se revoltava consigo mesma. A leitura de si e de sua realidade era muito clara para S., ela sabia perfeitamente quem era. Era tudo muito claro, cristalino. Ela enxergava cada passo errado e tinha plena consciência sobre a quem culpar.


S. está na faixa dos trinta e dois, trinta e três anos. Em sua carreira, é a idade da decadência. Ela mesma diz, que está ali por ser fruta usada, que seu tempo é de descobrir uma alternativa, algo que lhe permita sustentar três filhos de três pais diferentes.


Onde tudo começou? É difícil falar. Mas se tivesse que escolher uma memória onde comecei a destruir minha vida, vou dizer que foi aos 14 anos. Eu era a atrasadinha da minha sala. Sabe como é, escola pública, tudo uma zona, minha mãe era evangélica, eu achava que era também, até descobrir que Deus não ama as putas, mas tinha aquele negócio, né? A gente sempre olhava pros menininhos como se eles fossem alguma coisa. E homem, homem é sempre homem, quer te comer e pronto. E não era diferente naquela época, era até pior. Pior porque eu não tinha malandragem, não sabia como essas coisas acontecem. Daí, foi só um moleque me pegar na lábia dele, que eu virei acessório. Ele ia fumar um chá atrás da escola, eu tava lá. Ele ia jogar bola, eu ia atrás. Caguei com a escola, caguei com os estudos. Começou ali, por causa de homem. Por causa de homem eu larguei da vida enquanto o homem me descartava. É assim, e quando ele te larga e você largou tudo, quem é você?


É aquele momento que ela para, toma um gole de cerveja, e fica em silêncio por uns dois minutos. Pensativa, suas feições mudam. Seu rosto perde os traços de irritação para saltar a tensão num gritante linear de tristeza.


Meus professores até ali diziam que eu era inteligente. Meu pai queria até me colocar em faculdade, sabe? Fazia planos. Dizia que eu iria aonde ele jamais poderia ter ido. Sorte que o velho morreu cedo, senão eu matava ele de desgosto. Imagina, ele acreditava que eu iria longe. Se ele tivesse visto tudo que eu fiz comigo mesma, para aonde eu me levei, morria só de frustração. Mas era bom, sabe? Quando alguém acreditava que você poderia ser algo, algo maior, alguém melhor. Pena que eu nunca me vi como ele me via.


Quando eu engravidei? A primeira vez eu já estava bem mais velha, com 22. Não foi isso que estragou minha vida, meus filhos não têm culpa. E não, eu não engravidei por ser puta. Nunca vacilei com cliente, não faço as coisas sem (proteção). Foram todas cagadas mesmo. Não pelas crianças, elas não têm culpa. É cagada por causa dos pais.


A da primeira está morto. Porque o primeiro era bandido. Mas nem pra escolher bandido direito eu sirvo. Escolhi logo dos ruins. Ruim porque ele era ladrãozinho. E por isso morreu. Foi tentar roubar polícia, já viu né? O segundo não dá para falar muito. É um bêbado inútil. Por causa dele que eu virei puta. Não comecei cedo. Se tivesse, tinha aproveitado melhor, tinha ido trabalhar nas casas um pouco mais caras. Agora eu estou velha. Não estou mal, mas estou velha. Ninguém quer pagar R$ 200 numa neguinha de 30 anos. Tem muita lorinha de 20 que dá para esses caras para pagar a faculdade bacana. Se eu fosse uma puta esperta, tinha feito isso. Mas não, fui ser puta para bancar bêbado e sustentar dois filhos. Até que cansei de sustentar ele e me foder aqui, sabe?


E o terceiro? O terceiro? O terceiro fugiu. Ele é do Maranhão, então acho que ele fugiu para lá. Quando eu conheci, estava tentando largar. Ele queria que eu largasse. Disse até que iria assumir meus filhos. Ele era pedreiro, tinha vindo para cá trabalhar nessas construções de prédio, que estava tendo muito nos últimos anos. Aqui estavam pagando bem o peão de obra. Mas ele fugiu. Não, ele não fugiu de mim. Fugiu da cagada que ele fez. Ele errou alguma coisa numa obra e matou outro peão. Daí fugiu. Saiu um dia para trabalhar, daí eu soube que ele fugiu pela polícia. Nem passou em casa. Desapareceu. Nunca mais tive notícia. E me deixou com mais filho, aquele sacana.


E daí você voltou? Voltei. São três moleques pequenos. Minha mãe cuida para mim, mas como eu faço para pagar as contas? Eu não sei fazer nada. Poderia até aprender, mas quem vai dar um emprego para mim com mais de trinta na cara e sem nada na carteira? E se tivesse carteira, meu único registro seria puta. E ai, quem quer uma puta no escritório? Nem caixa de mercado eu seria se descobrissem o que eu faço.


Sabe por que? Não, não sei. Porque todo mundo come uma puta, mas ninguém quer a puta em casa. A gente é descartável, é por isso que vocês pagam. Não é pelo sexo, é para poder usar e jogar fora. O preço é para jogar fora. É o prazer de atirar na lata do lixo depois do que você queria.


Como assim? Qualquer menininha que você saia e coma, vai ter uma monte de coisa depois. Tem que conversar, tem que conviver e vocês homens não querem nada disso. Vocês querem apenas gozar e jogar fora. Depois que vocês comem, acabou, vocês já fizeram tudo que lutaram, vocês não conquistam uma mulher porque querem a mulher. Vocês querem usar a mulher e depois que vocês usam, não sabem mais o que fazer com ela. Ela parece que não serve para mais nada, não é? Você acha que eu estou errada? Se estivesse, não tinha tanta puta.



*Esse é o primeiro texto de uma sequência de entrevistas que fiz em 2013. Nelas, apenas pessoas sem nome, sem rostos, as sombras da sociedade. Prostitutas, mendigos, presos, meninos de rua, vendedores de doce do metrô.

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