23 janeiro 2014

Porque o meu samba é cada dia não morrer

E sentia o sabor fresco do ar. Mesmo o ar não tendo nada de fresco. Estava completamente poluído, como se tivesse sido temperado de forma arquitetada pela fumaça de cada carro da cidade. Porém, depois de cinco anos sem sentir esse sabor de poluição, ele era quase divino.


No dia que pode cruzar aquelas paredes, ninguém estava à porta. Não que ele sentisse qualquer decepção ou rancor por isso. Havia três anos que ninguém o visitava. Sua namorada à época resistiu por apenas dois meses, depois de descobrir o quão incomodo era ser revistada de todas as formas e jeitos, nunca mais voltou. Depois de três meses, nem as ligações ela atendia mais.


Mas triste foi o dia que a mãe não apareceu. Era Julho. Foram três semanas seguidas que ela não foi até que lhe dessem a notícia. Até hoje ele preferia que a mãe lhe tivesse desenvolvido ódio, que o quisesse morto e por isso não atendesse ligações, nem o visitasse. Nada seria mais cruel do que ela morrer e não poder estar lá. Não poder se despedir. Não poder dar adeus. Continuar com a figura de uma ausência que nunca será solucionada. Uma lápide não consegue encerrar ao coração quem se foi sem despedir. É só mais uma repetição gritante da ausência.


Mas em um dia como esse, esperava pelo menos alguém. Um amigo, qualquer um dos irmãos ou primos. Tudo bem que nenhum deles o visitou em nenhum dos cinco anos que esteve preso. Ninguém quer se submeter a posar na frente do presídio por causa de um traficante vacilão.


Sobreviver na prisão não foi difícil. Hoje, você só morre lá dentro se for um idiota. E São Paulo não é o Maranhão. Aqui é como se fosse outro país, outro mundo. A gente fica amontoado? Fica. Tem mais gente do que cabe? Tem. Mas o que mata no sistema ou é outro preso ou é polícia. Os carcereiros estão mais a fim de tornar sua vida uma merda do que acabar com ela. É mais divertido torturar o rato de laboratório que matá-lo. Não que os presos não sejam substituíveis, todos são. Mas se você reduzir o número de presos, você perde um dos principais fatores de tortura e jogo psicológico, que é a disputa por espaço. Deixe todos desconfortáveis que os jogos psicológicos ficam mais intensos.


Mas eu era na minha. Ficava no meu canto, jogava minha bola e abaixava minha cabeça. Sempre fui peixe pequeno. E quando o aquário é grande, você nada só entre as pedras, longe do caminho dos grandes. Nem para o bem, nem para o mal. Você não quer ser um peão do jogo quando os tubarões decidem que é hora de jogar. Se for para sacrificar alguém, a primeira opção é sempre o peão. Porque peão tem um monte. Tem fábrica de peão. Favela faz peão todo dia. E também tem uma razão para sempre ter pivete novo entrando na parada. Na guerra, quem morre mais, coronel ou soldado?


Por isso que lá dentro o meu samba era de ficar vivo. Eu ficava ali no meu sapatinho, quieto, porque enredo era de cada dia não morrer, não pular no cruzado de ninguém, nem me sujar por ninguém. E por isso você paga um preço. Quem não samba de um lado, não ganha favores. E quem não ganha favores, não sai mais cedo, nem tem advogado bacana. Só quem dança no batuque do partido, entende? Quem quer largar essa vida e sair limpo de lá, a história é diferente. Tem de lutar sozinho contra o sistema. E o sistema não perde. Ele não sente, nem se importa, tudo que você pode fazer é não deixar ele foder ainda mais com você. Eu saí em cinco. Poderia ter ficado muito mais. Era só não ter caído no gosto da pessoa errada e pronto, ficava mais uns três, fácil.


Como eu fui preso? Foi quando eles fecharam a boca. E a merda foi eu estar com a blusa cheia de tiro. Estava carregando o suficiente para fazer nevar na quebrada inteira. E eles chegaram arrepiando, jogando o carro em cima, com tiro pro alto colocando todo mundo no chão. Pegaram as armas, limparam tudo.


Como você entra nisso? Igual qualquer um começa a usar (drogas). É um amigo que está nessa merda que faz você ir. O primeiro moleque que apareceu com corrente e Nike convenceu metade dos pivetes ali, só por estar usando um tênis que custava a mesma coisa que a geladeira de casa que meu pai tinha parcelado em doze vezes no carnê. Você vê ali poder, porque é um meio de você conseguir rápido tudo aquilo que todo mundo diz para você que você precisa ter. O dinheiro rola fácil até para aviãozinho. Avião costuma tirar pelo menos tanto quanto o trabalhador. Você acha que não é convidativo?


Ele fica ali, empinando o pipa, joga pra um lado, pro outro e avisa de tudo pra boca. Ganha o troco dele. Por ficar empinando um pipa. Você acha que ele quer isso ou ir para escola para tirar um diploma para limpar a privada do playboy? Quantos da favela você acha que chegam numa faculdade? Quantos terminam? Quantos viram chefe? Na minha quebrada nenhum. Quando o cara cai no tráfico, ele é o negócio, ele tem o poder, ele tem a arma e tem a droga. E isso tudo vira dinheiro. Dinheiro que ele nunca iria ter. O sistema diz para você que não vale a pena ser honesto. Se você for, vai ter que se conformar em ser o degrau que todo mundo vai pisar para estar mais alto.


Agora? Eu faço meus corres. Aluguei aqui minha casinha no pé da pista. Fiz da minha garagem uma borracharia. Também faço uns bicos de mecânica. Aqui no fim do mundo só tem carro velho. Então sempre tem carro quebrado. Dá pra viver. Ninguém quer saber se o cara que remenda o seu pneu furado cumpriu pena. Quer o pneu pronto e ir embora. Quer que eu seja rápido. Vai embora logo, normalmente, nem meu nome pergunta. É bom. Dá para esquecer quem eu sou. Dá até para acreditar que poderia ter sido diferente desde o início. Que eu poderia ser um degrau que as pessoas não evitassem de pisar. Porque às vezes ser degrau é bom. Faz você sentir parte, mesmo que seja só para ser pisado. Pelo menos você está lá.


*Esse é o segundo texto de uma sequência de entrevistas que fiz em 2013. Nelas, apenas pessoas sem nome, sem rostos, as sombras da sociedade. Prostitutas, mendigos, presos, meninos de rua, vendedores de doce do metrô.

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