27 janeiro 2014

Só vive quem fica louco

As mãos estão tão sujas que estão mais que negras, estão piche. Na face, também há traços de graxa que mostram que um banho é coisa que não se vê faz dias. Os corpos magros são de quem come esporadicamente. A gente faz o corre, vai indo no dia até o dia acabar. A gente só quer chegar no final do dia com os nossos trocados. Ai a gente vê o que faz. Ou compra algo pra comer quando alguém quer vender ou arruma algo pra deixar acesso. Tem que ser assim.


São dois irmãos. Um de doze, o mais velho, o outro de nove anos. Durante os dias, ficam na Zuquim, na zona norte de São Paulo, fazendo malabares ou mal lavando parabrisas, arrumando uns seus trocados. Tem dias que arrumam o suficiente para todos comerem. Ficam num grupo de sete garotos, nenhum deles têm mais do que quatorze anos.


A noite a gente passa onde der. Ninguém aqui tem casa. Não mais. Todo mundo fugiu por algum motivo. A gente porque o pai bebia e batia em todo mundo. A mãe fugiu, mas ele não deixou ela levar a gente. Mas a gente deu um jeito e fugiu também. Depois, não sabe mais o que aconteceu. Mas acho que eles devem ter se matado ou algo assim. Mas tanto faz, a gente não importava muito lá mesmo. Hoje, é melhor que antes. Hoje a gente não apanha. E faz o corre que a gente quer. Antes a gente ficava em casa preso, igual bandido.


A gente não vai nesses abrigos (albergues) porque não pode. Menor de rua que vai pra lá não volta. Eles mandam para aquelas casas lá. Se a gente for lá, vão separar a gente. Vão mandar ou de volta pro pai ou pra casa de alguém qualquer ai. A gente não quer. A gente já se vira. A gente não precisa que alguém diga pra gente o que fazer. A gente trabalha aqui, tá vendo? Eu posso limpar o seu carro, é trabalho!


Mas é o corre que eu quero. Eu podia roubar, matar ou traficar, tem um monte de moleque igual nós fazendo isso. Na hora que a gente quisesse podia fazer, sabe? Mas a gente não quer, a gente acha mais legal fazer isso. A gente não precisa de mais agora. A gente come quando quer. Cheira quando quer. Brinca quando quer. Faz o corre quando quer. E não apanha de ninguém porque a gente protege um o outro. A gente aqui é tudo amigo, tudo família. Tamô juntos, tá ligado?


A gente já está um tempo nisso. Ah, tem uns dois, três anos, não sei dizer, mas é mó tempão. Quando está frio? Ah, a gente compra algo pra cheirar, né? Ninguém vende cachaça pra moleque igual nós. Mas pra conseguir droga rola. Traficante não pede RG, né? Daí a gente usa e não sente nada. Quem não usa, apaga e não aguenta. Ou vai pro abrigo e nunca mais volta ou vai pra ambulância e nunca mais volta. O morre mesmo. Só vive quem fica louco, tio.


Mas precisa. Se você cheira (cola), você não sente nada. Você fica igual o super-homem! Pode até tomar uns capote que não dá nada. Daí a gente só pega papelão das lojas por aqui, os crentes sempre dão cobertor pra nós e a gente aguenta bem. Daí tem madrugada que passa uma tia e dá pão, leite. A gente se vira bem no frio.


O que é bom? Bom é o dia que uns tios dão lanche do MC pra nós. Como é pertinho, tem dia que a gente tá com fome e fica lá perto. Daí dá uma chorada e sempre alguém ajuda, dá pelo menos um hambúrguer ou uma batata. Mas o MC não dá nada não. Não deixa nem a gente entrar. Nem quando a gente tem dinheiro. A gente tenta, mas quando entra já enxotam a gente pra fora. Tinha até uns tempos atrás um gerente que era gente boa, ele pedia pra gente esperar do lado de fora e às vezes dava pra gente uns negócios que fizeram errado. Mas ele foi embora daí e ai nunca mais ninguém foi com a cara da gente. Mas também, tudo sujo assim, né? Nada a ver com os playboyzinhos que vão lá.


Não, antes de ir pra rua eu nunca tinha comido MC. Meus pais não saíam com a gente. Não tinha dinheiro, se pá. Meu pai só bebia e ia no jogo. Daí, se o Corinthians perdia, era ruim, porque ele bebia mais e voltava bravo. É por isso que a gente não é Corinthians. Porque quando perdia dava muita raiva, porque a gente já sabia que ia apanhar.


Sim, a gente gosta de jogar bola. A gente até vai jogar ali no parque (da Juventude) às vezes. Junta com uns moleques que vem aqui e joga. É divertido. A gente não joga bem, mas gosta de jogar. Só é chato jogar descalço. Porque de sandália não dá, né? Fica tudo torto, pisa errado, chuta mal. E às vezes machuca o pé. Mas a gente se diverte. E faz o corre, né? Aliás, tio, vai rolar o lanche mesmo, né?

*Esse é o terceiro texto de uma sequência de entrevistas que fiz em 2013. Nelas, apenas pessoas sem nome, sem rostos, as sombras da sociedade. Prostitutas, mendigos, presos, meninos de rua, vendedores de doce do metrô.

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